segunda-feira, 24 de abril de 2017

CACHÉ

NOTA 8,5

Suspense propõe uma angustiante
narrativa em que um família pode se
dissolver por conta de consequências
de mazelas históricas e segredos
Chato, estranho, perturbador, melancólico, ousado, estilístico, autoral, alternativo ou excepcional. São várias as palavras que podem ser empregadas para definir o suspense francês Caché, tanto negativas quanto positivas, mas o fato é que não dá para ficar inerte quanto à obra. Os cinco primeiros minutos já demonstram que o filme foge do convencionalismo. Um longo plano estático de uma residência de classe média alta é mostrado à distância, mas aparentemente nada de anormal acontece. A certa altura a imagem é congelada, rebobinada e depois avançada enquanto ouvimos uma discussão a respeito do conteúdo desta fita VHS, um presentinho misterioso que o casal Anne (Juliette Binoche) e Georges Laurent (Daniel Auteil) recebeu embrulhado em um papel contendo um sinistro desenho feito com traços aparentemente infantis, mas chama a atenção que em meio aos rabiscos negros existe um detalhe em vermelho simbolizando sangue. A família aparentemente não tem problemas emocionais, financeiros ou inimigos, pelo contrário, pais de um único filho, o adolescente Pierrot (Lester Makedonsky), o casal vive imerso em um universo burguês e cultural. Georges apresenta um programa de crítica literária na televisão enquanto a esposa trabalha em uma editora de livros. A gravação da fachada da casa dura cerca de duas horas, incluindo também cenas noturnas, e os Laurent acreditam que pode ser alguma brincadeira de mau gosto de algum colega do filho, mas mesmo assim eles ficam com a pulga atrás da orelha afinal não é nada confortável ter a sensação de alguém estar vigiando seu cotidiano. A preocupação aumenta com telefonemas cuja voz do outro lado se cala, cartões com imagem macabras enviados até mesmo para Pierrot e uma segunda fita contendo imagens da fachada da casa de mãe de Georges. Não há dúvidas, alguém que conhecesse esta família muito bem está tentando apavorá-la, aliás, tem conhecimento de detalhes da infância do patriarca, mas sem danos materiais ou físicos a polícia diz que nada pode fazer. O monótono cotidiano do clã então sofre uma sacolejada forçada e até mesmo desequilibra o relacionamento modelo de Georges e Anne. Ela acredita que o marido está escondendo algo e o crítico, por sua vez, liga alguns pontos coincidentes e suspeita que um ex-amigo de infância que não via a muito tempo está por trás de todas essas ameaças, mas explica esse passado com meias palavras à esposa.

Majid (Maurice Bénichou) era filho de um casal de argelianos empregados dos pais de George e quando ainda usavam calças curtas o futuro jornalista teria armado uma arapuca para desacreditar o amigo e assim conseguir sua transferência para um orfanato. Nos anos 60, as relações da França com a Argélia, então uma de suas colônias, estavam estremecidas e muitos argelianos teriam morrido em Paris durante um protesto contra a política colonialista do governo francês. Os pais de Majid teriam falecido afogados em um massacre policial e a família de Georges pensava em adotar o garoto, mas o filho legítimo se irritou por ter que dividir as atenções e até mesmo seu quarto e teria contado uma mentira cabeluda para afastá-lo para sempre. Enquanto Majid amarga uma vida de frustrações por não ter tido uma boa educação e estrutura familiar, seu algoz goza de uma vida de privilégios, assim o crítico está certo que a tortura psicológica que está sofrendo é um plano de vingança. Dessa forma, o filme pode ser comparado a uma alegoria feita à política das relações inter-raciais. A França desenvolvida e que repudia seu passado obscuro é representada por Georges enquanto a combalida Argélia, mesmo hoje emancipada, tem em Majid a sua imagem. Quem tem mais poder só pensa em mantê-lo ou ampliá-lo, os outros que se danem. Austríaco radicado na França, o diretor e roteirista Michael Haneke é um grande observador do comportamento humano em situações complexas ou limites e suas obras costumam ter como foco personagens da classe média atingida por algum tipo de choque, como no caso de Violência Gratuita, obra que ele filmou em 1997 e fez questão de assinar uma refilmagem em 2009. Antes mesmo da superexposição de seu melancólico e sofrido Amor, vencedor do Oscar de filme estrangeiro em 2013, o cineasta vinha traçando uma interessante trajetória colhendo elogios da crítica e prêmios nos mais diversos festivais, mas seus trabalhos sempre foram restritos a plateias seletas que buscam um cinema longe dos clichês hollywoodianos. No caso deste suspense, não há espaço para adrenalina, edição frenética, barulho, diálogos super inflamados e até mesmo a trilha sonora é desprezada, assim o espectador nunca é avisado da emoção que sentirá a seguir. Cada mudança de cena é uma surpresa. Fugindo das estruturas do tipo quebra-cabeças, que quase sempre apelam para a câmera tremida ou mudanças na fotografia, Haneke consegue envolver e angustiar com sua câmera lenta que parece buscar pistas em qualquer detalhe visual. O filme já começa de forma inovadora. Os créditos iniciais são apresentados continuamente como se alguém digitasse um texto diretamente na tela. O amontoado de letras lembra a uma espécie de código.

Os vídeos perturbadores que os protagonistas assistem ao longo da narrativa propositalmente possuem uma imagem perfeita, um recurso para confundir ou testar a atenção do espectador. Qualquer desvio e fica difícil distinguir se a cena da frente da casa faz parte do roteiro ou se pertence ao vídeo amador, dessa forma tais imagens assumem praticamente a função de um personagem onipresente, aquele que vigia o cotidiano dos Laurent. A sensação de desorientação é a principal responsável pelo clima tenso que acompanha o longa do início ao fim, um luxo que pode se dar uma produção independente. Certamente se fosse feito nos EUA produtores insistiriam para que fosse feita uma diferenciação da imagem do filme dentro do filme, o que tiraria boa parte do valor da proposta.  Mesmo com seus trabalhos em sua maioria tendo distribuição restrita, o nome Haneke há anos está em evidência, mas como um cineasta autoral ele não se deixou comprar pelo cinema industrial, assim suas obras preservam elementos característicos de sua filmografia. Os efeitos do passado no presente, a paranoia do ser humano diante de um problema pessoal ou coletivo e a dificuldade que os indivíduos têm de aceitar as responsabilidades sobre seus atos são algumas das coincidências entre suas produções. Caché, um verbo francês que significa esconder ou ocultar e que cai como uma luva ao filme, amplia o universo do cineasta ao resgatar mazelas históricas da França. A ideia de fundamentar sua trama em um episódio de intolerância étnica e cultural surgiu depois que ele assistiu a um documentário sobre o massacre de cerca de duzentos argelinos que foram atirados no rio Sena em Paris em 1961. Nem sempre a mídia destaca, mas mesmo após muitas colônias terem se emancipado, alguns países da Europa ainda mantém relações conflituosas entre os grupos raciais dominantes e as minorias étnicas provenientes de países antes colonizados (geralmente africanos). A situação é mais ou menos como a dos negros no Brasil. Os “diferentes” acabam segregados em classes sociais rebaixadas naturalmente já que não são oferecidas oportunidades para se nivelarem aos caucasianos dominantes. É satisfatório ver que por trás da aparente inércia este suspense tem muito a dizer simplesmente trazendo uma problemática social a uma esfera menor, mas não espere descobrir quem é o vilão da história. Talvez nem mesmo quem seja o autor das ameaças. Haneke segue suas convenções de apenas incomodar e denunciar, deixando para o espectador concluir a trama de acordo com seu entendimento.  

Suspense - 113 min - 2005 

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