quinta-feira, 17 de março de 2016

CARROS

NOTA 8,5

Pixar consegue humanizar os
carros em trama que escamoteia
crítica ao progresso acelerado, em
 sua essência implacável e egoísta
No mundo do cinema tudo é possível e quando se trata do campo das animações o céu é o limite, tanto que qualquer objeto pode ganhar vida e ser dotado de personalidade e sentimentos tal qual um ser humano comum. É justamente a humanização dos automóveis o grande trunfo de Carros, longa animado que literalmente dá vida a uma das maiores paixões do homem. A Pixar já cultivava a tradição de ter suas produções protagonizadas por objetos, animais e até monstrinhos, sendo Os Incríveis até a única animação do estúdio em que os humanos não ficavam em segundo plano, porém, no longa em destaque a empresa radicalizou e venceu o desafio de criar um universo exclusivamente habitado por seres de quatro rodas, automóveis das mais diversas marcas e estilos. Mais de 40 mil modelos de possantes foram testados até encontrar os ideais para compor o elenco do filme, exemplares que pudessem remeter a veículos reais e famosos, mais um chamariz para o público se divertir procurando referências, além das tradicionais citações a filmes de sucesso que podem ser compreendidas melhor pelos adultos, mas nada que atrapalhe a diversão da garotada. A trama gira em torno de Relâmpago McQueen, um veículo de corridas muito ambicioso e que deseja se tornar o primeiro estreante a vencer a Copa Pistão, mas a fama lhe sobe no motor e ele acredita que pode fazer tudo sozinho sem a necessidade de uma equipe de apoio. A arrogância acaba lhe custando o seu sonho. Na última disputa da temporada os seus dois pneus traseiros estouram e assim os principais adversários, o ídolo conhecido como O Rei e o traiçoeiro Chick Hicks, cruzam a linha de chegada juntos, o que leva a uma corrida extra na Califórnia para que aconteça o desempate. McQueen deseja ir até o local ainda com esperanças de que o jogo ficasse favorável para o seu lado e pede ajuda ao caminhão Mack. Ele deseja chegar antes dos outros competidores e insiste para que a viagem não tenha interrupções. O problema é que Mack acaba dormindo durante o trajeto, o que faz com que a caçamba se abra e seu amigo que também estava dormindo seja largado em plena estrada. Ao acordar, o corredor se vê sozinho e chega à pequena Radiator Springs, uma cidade do interior pouco movimentada onde ninguém nunca ouviu falar nada de sua fama ou no tal campeonato do qual ele participa. Por ter cometido uma grave infração de trânsito e destruído a principal rua da local, o esnobe carro é obrigado a asfaltá-la novamente. Sem poder ir embora, aos poucos ele faz amizade com os habitantes, como o divertido Mate e a inteligente Sally, e aprende importantes lições de vida, como o fato de que ninguém pode viver sem companhia e o dever de respeitar os mais velhos.

Na época comemorando duas décadas de atividade, a Pixar, acostumada a receber elogios rasgados e polpudas bilheterias logo nos primeiros dias de lançamento de seus trabalhos, acabou levando um susto com a fria recepção que o longa recebeu em solo americano, mas a situação logo foi revertida a favor da empresa. Todavia, apesar de todos os elogios e prêmios que a obra recebeu posteriormente, ainda há quem nunca a tenha visto, principalmente garotas, acreditando que não passa de uma história batida sobre corridas automobilísticas, mas este projeto pessoal do diretor John Lasseter, assumindo a direção de uma animação após quase uma década de hiato (sua atividade principal é como executivo da Pixar), vai além das expectativas apresentando uma história com traços humanos, mas adaptada e ironizando as situações e vocabulários típicos do universo dos veículos. A abertura empolgante e eficiente, com música agitada e uma edição de cenas acelerada, apresenta a visão panorâmica de um estádio onde diversos carros estão disputando uma corrida e rapidamente ficamos conhecendo o protagonista da trama e seus rivais, deixando estabelecido o conflito sem dar muitas voltas. O início é bem o oposto do que vem a ser a temporada de McQueen em Radiator Springs. A adrenalina é substituída pela melancolia (no bom sentido), assim o longa assume um ritmo de narrativa mais clássico, priorizando inclusive as belas paisagens que reconstituem com perfeição as estradas poeirentas e os rochedos do oeste americano. O clima bem interiorano é propício para uma história que deseja transmitir boas lições de vida. Apesar da Disney ainda na época apenas tratar da distribuição e promoção das animações da Pixar, não tem como dizer que a empresa não influenciou na produção. O enredo edificante focando a superação de problemas e os personagens carismáticos e divertidos já são tradições do estúdio do Mickey Mouse e se fundiram muito bem ao estilo criativo e ao ritmo frenético da empresa de desenhos considerados moderninhos. Nessa parceria, cada companhia entrou com aquilo que faz melhor, mas no fundo as duas dominam muito bem as técnicas para construir um belo visual e um roteiro inteligente. Um casamento perfeito. Lasseter queria realizar um trabalho que homenageasse seu pai, um mecânico que lhe transmitiu a paixão por automóveis e também o apreço pela nostalgia, assim uniu o útil ao agradável ao abordar o desejo de um carro em se tornar o grande campeão de uma corrida que acaba por passar por uma experiência única de vida em um lugar onde ser enferrujado é motivo de orgulho. O tema se ajustou perfeitamente a proposta. Felizmente o diretor não se prendeu ao mundo das corridas e transferiu o foco da história para uma pequena cidade a fim de explorar o velho, mas ainda válido choque entre culturas. McQueen vem do mundo do sucesso, dos flashs, das entrevistas e de onde levava uma vida confortável, mas acabou caindo em um pacato local onde ele não é nada mais que um visitante comum e onde todos têm um estilo de viver muito simples. Essa adaptação a uma “vida normal” é a grande sacada do roteiro. Além de abrir caminho para divertidas ironias e metáforas, a ideia também ajuda a fisgar a atenção do público que acaba se identificando com esse conflito, mesmo tendo em cena carrocerias animadas ao invés de corpos de humanos, mas a certa altura até esquecemos esse detalhe. Adaptando as partes da frente dos carros para transformá-las em rostos, o resultado é impressionante e cada um dos personagens consegue transmitir os sentimentos e expressões como se fosse uma pessoa real.

Apesar dos personagens bonitinhos e cativantes, é preciso ressaltar que o enredo faz um retrato da sociedade norte-americana, ou melhor, de todas as sociedades que habitam cidades grandes em qualquer parte do mundo, criticando o progresso a qualquer preço, o crescimento desenfreado dos grandes centros urbanos e a falta de solidariedade inerente. A paisagem cinza e engessada acaba soterrando o que há de bom e bonito do cotidiano e do próprio ser humano e quem não segue a trilha do progresso acaba sumindo do mapa. O vilarejo de Radiator Springs, a cidade dos carrinhos “gente boa”, não se modernizou e acabou ficando esquecida, porém, seus habitantes provavelmente são dotados de muito mais otimismo, bom humor e generosidade que qualquer “saído da fábrica” que roda em alguma grande metrópole. Quando passa alguém por perto desta cidade esquecida, isso é motivo de festa e de tentar trazer lucros ao local, bem no estilo de cidadezinhas reais que parecem que pararam no tempo, paisagens que muitos custam a acreditar que ainda existam. Aliás, a mitológica Rota 66, onde se encontra o fictício vilarejo dos modelos fora de série, é um desses lugares literalmente esquecidos. Ela foi a primeira rodovia interestadual norte-americana e entre os anos 50 e 60 tornou-se a estrada principal do país, mas quando uma nova pista mais ampla e com melhorias foi inaugurada a Rota 66 caiu em desuso e hoje está entregue ao matagal e a depredação natural. A ambientação da trama nesse espaço desolador e atualmente pouco conhecido foi uma opção arriscada de Lasseter, também autor do roteiro em parceria com Dan Fogelman, mas prova mais uma vez que cinema é cultura. Para bater de frente com o ar vintage do vilarejo, o diretor ainda procurou na abertura e no fechamento do longa ressaltar as diferenças entre o mundo experimentado por McQueen e o seu habitat natural apresentando uma síntese do que é o universo do circuito de corridas Nascar. Investindo em colorido forte, muitos ruídos, trilha sonora forte e edição delirante que faz o espectador sentir como se estivesse acompanhando uma corrida de verdade, com direito a closes estratégicos de detalhes dos automóveis, todo o perfeccionismo é justificável em nome de um realismo absurdo que neste caso felizmente acompanha harmoniosamente uma divertida e edificante narrativa. Mesmo enraizando a trama em ambientes que fazem muito mais sentido ao público americano, a mensagem principal é universal e atinge em cheio crianças e adultos de qualquer parte do mundo. O progresso trazendo novidades e o individualismo arraigado, a tal da lei do sucesso a qualquer preço, em contraponto ao antigo com suas tradições e espírito de coletividade, eis a grande reflexão que Carros traz à tona e que o torna uma interessante opção para se divertir e aprender algo. Em tempos em que o egocentrismo esta em alta, vale muito mais conquistar uma amizade ou fazer o bem a alguém do que ganhar um troféu ou um elogio por ser autossuficiente, tenha certeza disso. Em tempo: merece destaque a duração da produção, quase duas horas, algo fora dos padrões de produtos infantis, mas uma decisão necessária para a boa condução da trama, tornar crível a trajetória de redenção do protagonista, e que de quebra afronta o próprio mercado cinematográfico que visa lucros e não qualidade. E assim, mais uma vez, a Pixar/Disney vence uma corrida pelo sucesso.

Animação - 116 min - 2006 

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Um comentário:

Rafael W. disse...

Ao contrário do que dizem, é um excelente filme da Pixar. Mas tenho medo de ver o 2.

http://cinelupinha.blogspot.com/