NOTA 6,5 De maneira bem humorada, longa trata de temas polêmicos envolvendo representantes do povão que só querem ser felizes |
Entre os anos de 2003 e 2004 o
mercado cinematográfico brasileiro passava por um momento expressivamente
positivo. Além das bilheterias em ascensão como um todo, os produtos nacionais
finalmente conseguiam brigar de igual para igual com os longas norte-americanos
por um lugar ao sol, ou melhor, no escurinho do cinema. Cidade de Deus, Carandiru e Olga
são alguns dos principais exemplos bem sucedidos desse período. Além de
revisitar fatos históricos, nossos profissionais do ramo também aprendiam que a
sétima arte em terras tupiniquins podia alçar voos mais altos e arriscaram em
produções com estéticas sujas e aparentemente modestas para retratar a
violência presente na modernidade, mas que tinham por trás um firme alicerce
financeiro e artístico. E aqueles filmes menores que costumam causar
burburinhos nos diversos festivais espalhados pelo país e conquistam elogios da
crítica especializada, qual a marca que eles deixaram? Pois é, tal qual ainda
acontece muitos bons projetos passaram em brancas nuvens tanto nos cinemas
quanto nas locadoras e nem mesmo na TV encontraram espaço digno. Esse é o caso
de Bendito
Fruto, uma comédia com toques dramáticos protagonizada por um grupo de
cidadãos suburbanos tipicamente brasileiros envoltos em situações por vezes
problemáticas, mas jamais abandonando o bom humor. O longa marca a estreia no
campo da ficção do diretor de documentários Sergio Goldenberg e traz uma
narrativa que conta com um triângulo amoroso principal e algumas subtramas
paralelas, uma estrutura que passa a ideia de um painel social, ainda que
pequeno. Edgar (Otávio Augusto) é o dono de um salão de beleza localizado em
Botafogo, no Rio de Janeiro, que herdou do pai e vive de certa forma convivendo
com a solidão, já que ainda busca uma esposa e nunca teve muito tempo para si
mesmo por causa das obrigações de cuidar da mãe doente até sua recente morte.
Na verdade, ele até tem uma candidata à vaga de seu coração, Maria (Zezeh
Barbosa), com quem mantém um relacionamento às escondidas por ela ser filha da
antiga empregada de sua família e também ser negra. Ela levava a situação numa
boa fingindo trabalhar de doméstica na casa de Edgar, mas quando seu namorado
reencontra por acaso uma antiga amiga dos tempos de escola, Virgínia (Vera
Holtz), e percebe que existe um clima romântico entre eles, a moça não quer de
jeito nenhum assumir definitivamente o papel de “a outra” e exige que ele a
assuma como seu verdadeiro amor.
Esse triângulo amoroso mantém seus
vértices estremecidos enquanto está no ar a novela “Primeiro Amor”, o programa
de TV preferido de Maria que inesperadamente vai conhecer pessoalmente o galã
da trama, Marcelo Monte (Eduardo Moscovis). O filho da doméstica, Anderson
(Evandro Machado), retorna ao Brasil após uma temporada na Espanha onde virou
um famoso DJ e chega na companhia do protagonista do folhetim. Sua mãe pode não
ter muita cultura escolar, mas foi educada pela escola da vida e não demora
muito a perceber que os dois são namorados, mas procura compreender as emoções
do filho afinal ela mesma vive o amor de uma maneira pouco convencional. Estão
apresentados os principais personagens da história criada pelo próprio
Goldenberg em parceria com Rosane Lima. Camila Pitanga também está no elenco
como Chiquita, uma das manicures do salão de beleza, mas seu papel é bem
apagadinho, embora seu final procure plantar a sementinha da conscientização
sobre o crescimento da violência. Contudo, tal mensagem é incluída de forma
discreta, sem impacto, assim como as aparições da personagem, diga-se de
passagem, fazendo um tipo de “periguete” light (na época o termo não era moda).
Por fim, Lúcia Alves surge como a balzaquiana Telma, outra manicure que serve
praticamente como figurante, só abrindo a boca para fofocas ou vez ou outra uma
fala de apoio a alguém. Aliás, é curioso que a atriz (cujo nome não é popular,
mas seu rosto conhecido pelos noveleiros) tenha ganhado um prêmio de atriz
coadjuvante no Festival de Brasília que também contemplou na categoria de atriz
principal Zezeh Barbosa, esta sim uma lembrança merecida. O tímido burburinho
que o longa gerou na época de seu lançamento se deve justamente as suas várias
menções e indicações a diversas premiações. Os patrocinadores que oferecem tais
láureas geralmente se cercam de críticos de cinema linha dura que adoram ver a
riqueza e a beleza existente no que comumente é visto como pobre e feio, mas
neste caso surgiram alguns comentários questionando que esta produção não é das
mais atrativas para tanta pompa, o que leva a crer que talvez o nível das
produções cinematográficas nacionais em 2005 apresentava certas deficiências de
forma que alguns trabalhos razoáveis tiveram seu status ampliado. A maior parte
do público certamente deve concordar com tais fatos, mas é inegável que aqui
temos um agradável trabalho que ao mesmo tempo em que diverte também apresenta
de forma digna uma contextualização social, tanto que os perfis dos personagens
são baseados em pessoas reais. Até mesmo o triste fim de Chiquita tem raízes na
realidade da própria jovem que a inspirou.
Por mais que o cinema nacional
tenha conquistado seu público de direito, ainda é perceptível o preconceito que
existe, principalmente após o boom das comédias de costumes que propositalmente
adotam uma estética televisiva e ritmo de especial de TV. Bendito Fruto adota as
mesmas características, incluindo o colorido forte impresso pela cenografia e
figurinos e a curta duração, mas ainda assim tem um quê diferenciado de outros
produtos do gênero, a começar pela premissa inspirada em uma notinha de jornal
que o diretor leu a respeito da explosão de um bueiro cuja pesadíssima tampa
foi parar em cima de um táxi. Desse inusitado episódio é que surgiu a ideia de
dois velhos amigos do tempo de escola se reencontrarem por força do destino
(Virgínia surge de dentro do bueiro para espanto de Edgar). Nossa natural
repulsa infelizmente acaba fazendo com que qualquer enredo mais simplório seja
rotulado como algo desnecessário, neste caso, apenas um fiapo de história para
justificar um tour cinematográfico revisitando os cartões postais típicos das
novelas da Globo, mas está muito enganado quem pensa assim. Goldenberg
timidamente consegue surpreender o espectador com um caldeirão de temas
pesados, como escravidão, racismo, homossexualismo e violência, temperados com
doses suaves de humor, ainda que para alguns captar os pormenores do cotidiano
dos populares soe mais como uma forma de ridicularizar àqueles que deveriam ser
homenageados pela obra. Pura bobagem. A leveza deste trabalho veio em momento
propício, época em que o público estava saturado de ver tanta pobreza e
violência nas telas de forma tão crua e nojenta. Há muito tempo o universo do
povão não era tão bem retratado. Quem mora no subúrbio não precisa
necessariamente ser criminoso, traficante ou ignorante. Tampouco só existem jovens
inconsequentes em tais ambientes. Aqui temos pessoas mais maduras vivendo
conflitos pessoais pertinentes até mesmo nas classes mais altas da sociedade,
nas quais o preconceito também se mostra das mais variadas formas, assim como a
violência. Embora o foco sejam os menos afortunados financeiramente, podemos
concluir que ricos e pobres em geral vivem situações semelhantes. A diferença é
que quando estão em dificuldades quem tem dinheiro sai para fazer compras ou
vai à terapia. Quem não tem grana tenta esquecer os problemas ouvindo um pagode
ou correndo ao salão de beleza do qual já é íntimo para desabafar.
Comédia - 89 min - 2005
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