NOTA 9,5 Drama traz a tona um fato prosaico acerca da História da família real britânica através de narrativa e visual clássicos |
Um futuro rei gago que se submete a uma estranha terapia na
qual mais parece que ele está participando de uma aula de teatro ou tendo algum
tipo de ataque. Por esta premissa dificilmente alguém diria que ela renderia um
bom drama e muito menos que é um fato verídico que aconteceu com um antigo
membro da família real da Inglaterra. Contrariando expectativas, não é que esta
ideia bizarra realmente é baseada em fatos reais e rendeu um bom filme.
Deixando de lado a pompa que se tornou marca registrada do épico Elizabeth ou o
apelo polêmico e nostálgico que gerou o interesse pelo drama A Rainha, o
roteirista David Seidler foi buscar inspiração em um fato prosaico da realeza
britânica que poderia ser ligeiramente cômico se não fosse tratado com
seriedade pelo escritor e também pelo diretor Tom Hooper na condução de O
Discurso do Rei, um título que não era o favorito da temporada de prêmios, mas
acabou se tornando a zebra das festas dos melhores do ano de 2011 no meio
cinematográfico. Com doze indicações ao Oscar, vencendo em quatro delas, e
acumulando outros tantos troféus e menções em diversas premiações, o longa fez
sua fama pouco a pouco e acabou atropelando outras excelentes produções.
Digamos que este trabalho é o que teria mais a cara de premiável entre os
selecionados do período por ser uma produção de época, o que já lhe garantiria alguns
prêmios pela parte técnica e visual, mas é curioso que justamente estes atributos
não chamaram tanto a atenção e os votantes dos eventos miraram nas categorias
principais para laureá-lo. A obra foi a escolhida para ser a queridinha dos
críticos na temporada por ser uma obra correta que pode não ser inovadora, mas
consegue apresentar com elegância e competência o que se propõe, uma produção
acadêmica e irretocável. A trama se passa na década de 1930 e gira em
torno de Albert Frederick Arthur George (Colin Firth), ou simplesmente
George VI, que desde a infância sofreu com a gagueira, muito devido aos
traumas que sofreu com as severas punições de seu pai, o rei George V (Michael
Gambon). Este é um sério problema para um integrante da família real britânica
que frequentemente precisa fazer discursos. Apesar de ter procurado diversos
médicos, nenhum deles trouxe resultados eficazes, mas as coisas mudam quando
sua esposa Elizabeth (Helena Bonham Carter) o leva até Lionel Logue (Geoffrey
Rush), um terapeuta especializado em distúrbios da fala que utiliza métodos
pouco convencionais para a época, como gritar palavrões repetidas vezes, mas os
benefícios do tratamento compensariam o esforço e a quebra de protocolos. O
médico se coloca de igual para igual com George e atua também como seu
psicólogo, assim com o passar do tempo acaba tornando-se seu amigo e
confidente. Os exercícios e métodos aplicados no tratamento fazem com que o
paciente adquira autoconfiança para cumprir o maior desafio de sua vida:
assumir a coroa após a morte de seu pai e a abdicação de seu irmão David
(Guy Pearce), o primeiro nome na linha de sucessão que teve coragem suficiente
de renegar tamanha responsabilidade.
Com a ajuda do terapeuta particular, da família, do governo
e de Winston Churchill (Timothy Spall), o rei George VI vai conseguir proferir
o seu mais importante discurso pela rádio, inspirando o seu povo a se unir para
enfrentar a iminente batalha contra os alemães na Segunda Guerra Mundial. Saber
que apesar do longo e conturbado caminho o resultado do tratamento foi
extremamente positivo não deixa de forma alguma o longa menos interessante. Mas
não espere uma grandiosa aula de história acerca dos tempos de guerra e
tampouco um trabalho cujo objetivo seja cutucar os nobres ingleses com segredos
revelados sobre os bastidores de seu sistema político. O título já diz tudo
sobre a obra, quem quiser que compre a ideia e deleite-se com um filme que é um
deslumbre visual e narrativo. O que chama a atenção neste projeto é conhecer um
pouco mais da intimidade, um lado mais frágil e emotivo que se opõe a imagem
rígida e pálida que cultivamos da família real britânica, tudo com tom
respeitoso, lembrando que o protagonista desta história é o pai da Elizabeth
II, aquela senhorinha bem vestida e aparentemente simpática que se viu no olho
do furacão quando sua nora, a Princesa Diana, faleceu em um trágico acidente de
carro e lhe foram cobradas condolências públicas, mas seu orgulho ferido devido
a acontecimentos do passado a impediam deste simples ato. Mas voltando a falar
do filme, o roteiro simples explora muito bem a história de duas pessoas que
foram unidas pelo sentimento da superação. O terapeuta na realidade desejava
ser ator, mas talvez não tenha conseguido sucesso na área justamente por falar
demais, enquanto ao herdeiro do trono o fato de se expressar mal poderia
significar sua ruína, afinal um líder que se preze tem como principal
característica o poder da comunicação e da persuasão, o que inerentemente
também afeta a forma como as pessoas enxergam sua imagem. Não basta ter o
“sangue azul”, é preciso fazer jus a ele. Tentando vencer os obstáculos que a
vida colocou em seus caminhos, o nobre e o terapeuta passam a ajudar um ao
outro e esta benéfica relação profissional e de amizade é acompanhada de perto
pela esposa do rei amedrontado. A trinca de atores principais são as cerejas do
bolo. Firth, substituindo Paul Bettany que recusou o papel e deve ter se
arrependido amargamente, mereceu todos os prêmios que levou para casa por sua
excepcional composição que lhe exigiu muito da parte vocal e até fisicamente.
Ele consegue mostrar ingenuidade e timidez ao mesmo tempo em que nos convence
em certos momentos com sua postura ereta e rosto sério que a qualquer momento o
líder de uma nação vai surgir com elegância, firmeza e triunfar. O esforço para
vencer a gagueira, extremamente convincente, chega a deixar os espectadores
inquietos e na torcida por sua cura. Assim finalmente o ator inglês teve seu
talento reconhecido provando que pode ir além do cara gente boa das comédias
românticas.
Rush também está excelente na pele do excêntrico terapeuta.
Quando ele e seu paciente estão em meio as sessões de tratamento é impossível
segurar o riso ao ver um nobre pronunciando repetidas e enfáticas vezes
palavrões alternados com versos rebuscados de William Shakespeare. Experiente,
talentoso e ousado, não seria um erro dizer que Rush briga palmo a palmo com
Firth pelo posto de protagonista da obra, mas é certo que seus personagens se
completam, servem de apoio um ao outro para ambos brilharem. O roteiro inclui
algumas citações obtidas dos diários de Logue que foram descobertos poucas
semanas antes do início das filmagens, informações que fizeram toda a diferença
para agregar ainda mais credibilidade ao projeto. Aliás, por causa de certos
diálogos da dupla, após a consagração do título no Oscar, a obra sofreu alguns
cortes para poder voltar aos cinemas de alguns países visando ampliar seu
público com a diminuição da censura. Vale destacar também a presença da Sra.
Burton no elenco. Carter tem uma interpretação aparentemente sem brilho em
comparação ao trabalho de seus companheiros, todavia ela esbanja sensibilidade
e humor sutil em um papel atípico em seu currículo. Raramente a atriz atua em
projetos que não levam o nome do marido nos créditos e neste caso ela ainda ousa
viver uma personagem convencional, reservada e elegante, imagem bem diferente
dos tipos excêntricos que costuma viver escondendo-se sob figurinos e
maquiagens extravagantes. Hooper teve muita sorte em ter seu trabalho super premiado
tendo em seu currículo apenas o regular drama Sombras do Passado e o
frouxo Maldito Futebol Clube, filmografia de alguém a quem o Oscar de
Melhor Diretor parecia um sonho distante. Apesar das críticas que sua obra
sofreu após derrotar nas premiações produções mais conectadas com a atualidade
e outras que exploravam a dramaticidade sem ser piegas, uma lição fica: cinema
bom nunca sai de moda. O cineasta investiu em um filme que une humor e drama no
melhor estilo inglês e bem próximo aos títulos de época produzidos na Era de
Ouro de Hollywood. Sem ser chato ou nostálgico demais, Hooper realizou um
trabalho que agrega os elementos dos filmes clássicos, mas de certa forma com
um toque de modernidade e de bom gosto que aproxima a obra das platéias mais
jovens e não desaponta aos mais tradicionais. Se a crítica aprovou essa refinada
receita, por outro lado boa parte do público rejeitou, mas é preciso se livrar
das amarras preconceituosas e dar um voto de confiança. No geral, o resultado é
muito agradável e até bem diferente do que se espera de uma obra que fala sobre
nobreza, política e a iminência da guerra. Produzido pelos irmãos Bob e Harvey
Weinstein, os sortudos produtores que sempre emplacam produtos nas premiações e
deram uma injeção de ânimo no cinema independente e para os filmes de época, O
Discurso do Rei é mais um título para a coleção de sucessos da dupla e
certamente merece uma revisão por aqueles que o apedrejaram.
Vencedor do Oscar de filme, direção (Tom Hooper), ator (Colin Firth) e roteiro original
Drama - 118 min - 2010
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