NOTA 8,0 Drama retrata o difícil período que a China viveu com governo reacionário e veto à elementos culturais |
Quem nunca ouviu falar que a cultura pode mudar um ser
humano e a longo prazo quiçá o mundo? O cinema e a literatura obviamente são
dois caminhos prazerosos para isso, mas o efeito positivo da junção dessas duas
manifestações artísticas pode ser ainda mais avassalador como nos prova Balzac
e a Costureirinha Chinesa, um belo drama com pano de fundo histórico dirigido
por Dai Sijie, um chinês radicado na França. O longa é baseado no livro
homônimo do próprio cineasta, uma autobiografia retratando o final de sua
adolescência quando passou por um processo de reeducação em um povoado
escondido entre as montanhas. Saber criticar, opinar e ter uma ampla cultura
sempre representou empecilhos aos regimes totalitários e não por acaso foram
duramente reprimidos durante a maioria deles, períodos marcados pela ênfase no
desenvolvimento da disciplina e tarefas que exigiam máximo esforço físico. Partindo
do mesmo princípio, Hitler comandou a Alemanha dessa maneira, por exemplo, e
até o Brasil viveu uma realidade parecida nos tempos da Ditadura Militar. No
filme acompanhamos alguns jovens que driblam as adversidades para enriquecerem
suas mentes e assim consequentemente tornando-se ameaças às regras
governamentais da China comandada por Mao Tsé-Tung. Nos anos 70, Luo (Chen Kun)
e Ma (Liu Ye) são dois rapazes que passam a ser apontados como inimigos do povo
pelo fato de seus pais serem médicos e considerados burgueses reacionários. Estes
adolescentes são presos e encaminhados a um campo de reeducação em uma vila
isolada no Tibet. Mesmo sem preparo físico, eles são obrigados a realizar
tarefas pesadas como camponeses e mineradores, uma forma de aprenderem o que
realmente é importante nesta vida segundo ditava o governo, ou seja, o trabalho
forçado e a obediência a uma hierarquia firmemente estabelecida. No campo eles
apenas encontram alívio nas músicas tocadas por Ma e nas histórias narradas por
Luo, embora livros e instrumentos musicais fossem proibidos e confiscados
sempre que encontrados. Através da cultura, esses amigos acreditam que a
mentalidade da ignorante comunidade da qual fazem parte pode ser mudada. A vida
miserável de ambos ganha um sopro de esperança quando conhecem a neta do
alfaiate local, uma garota conhecida simplesmente como costureirinha (Zhou Xun)
por quem os dois se apaixonam, cada um a sua maneira. Ela então lhes revela um
precioso tesouro: livros considerados subversivos e de autoria de pensadores
como Flaubert, Tolstói, Victor Hugo e Balzac, que estão de posse de Quatro
Olhos (Wang Hongwei), outro jovem que também está sendo reeducado e está
prestes a retornar à cidade. O trio então decide por roubá-los para promoverem
suas próprias revoluções pessoais, assim almejando a liberdade de pensamento e
a tão sonhada ruptura do autoritarismo.
Mao Tse Tung governou a China do final dos anos 60 a meados
da década seguinte com ideias reacionárias. Após os desastrosos resultados de
uma campanha denominada “O Grande Salto para Frente”, que acabou desencadeando
uma das piores ondas de fome da História mundial, Mao e sua equipe de governo
decidiram atribuir a culpa às influências do capitalismo sobre a China, assim
enxergavam nas artes e na cultura ocidental a principal porta de entrada de
tais pensamentos proibidos. Dessa forma, os intelectuais imediatamente passaram
a ser vistos como inimigos do povo chinês. No intuito de promover uma onda de
reeducação socialista, o ditador empreendeu no final de 1968 a Revolução
Cultural, uma espécie de lavagem cerebral desumana e coletiva. Ser uma pessoa
com censo crítico e culta era muito inconveniente para os regimes totalitários
que queriam comandar a população, portanto a ignorância do povo era tudo o que
precisavam e um trabalho incessante semelhante ao dos tempos da escravidão era
a maneira mais eficaz de se conseguir isso. Corpo cansado e tempo ocupado eram os lemas. Quem
era contra o governo acabava se manifestando através das artes e da cultura, correndo
o risco de sofrer terríveis consequências, inclusive pelo fato do regime
político conseguir jogar a população manipulada contra os intelectuais, um
conflito ente a maioria versus um pequeno grupo de indivíduos que precisavam
ser ouvidos. No território chinês a tal revolução que Mao impôs levou ao
fechamento das universidades e os jovens eram enviados ao campo para aprenderem
os valores que o governo julgava corretos para a construção de uma nação
direita. Estes regimes totalitários e as guerras contra as influências
culturais já foram explorados pelo cinema de vários países, cada qual
apresentando a sua maneira os efeitos desastrosos desse empobrecimento
intelectual. Sijie apresenta aqui a sua versão sobre o período reacionário
chinês, apresentando sua visão com muita intimidade e detalhes afinal, como já
dito, ele próprio viveu e sofreu as consequências. A cena que inicia o longa,
por exemplo, pode parecer simplória e até engraçada, mas para um jovem sentindo
na pele as pressões do governo ela com certeza é marcante. Reunidos em uma
aldeia, os camponeses estão alvoroçados para saber o que é um misterioso objeto
que um dos protagonistas trouxe na bagagem. Simplesmente é um violino, um
objeto comum para os habitantes da cidade, mas completamente estranho ao povo
do campo. Aliás, tal instrumento só não foi confiscado porque Ma convenceu a
todos que Mozart compunha em homenagem a Mao.
No filme roteirizado pelo próprio cineasta em parceria com
Nadine Perront o processo de superação dos três protagonistas acaba por se
refletir na vida daquelas pessoas humildes da aldeia em que vivem, um povo que
propagava ideais revolucionários sem mesmo saber o que eles significam. Esses
personagens "mais evoluídos" querem descobrir o que o mundo tem a
oferecer, mas precisam fazer tudo as escondidas para não sofrerem ainda mais
repressão. Nessa espécie de campo de refugiados onde as pessoas são obrigadas a
fazerem serviços pesados para ocupar o tempo e a mente, os jovens protagonistas
conseguem entrar em contato com a cultura mundial graças aos livros que roubam
e trazem as escondidas para a aldeia. Apesar deste furto, os conhecimentos que
o trio adquire através destas publicações acabam sendo repassados pouco a pouco
aos demais habitantes do local, como fica provado na cena em que as aldeãs
chinesas aparecem vestidas como francesas à beira-mar, uma ruptura e tanto aos
padrões do regime totalitário. O grande intuito de Balzac e a Costureirinha
Chinesa é fazer uma verdadeira homenagem a literatura, servindo como um
incentivo ao hábito da leitura mostrando o quanto ela é importante para o
crescimento de um indivíduo em vários aspectos. De quebra ainda temos um
contundente e necessário registro sobre um período histórico vivido por um país
cujo passado e cultura não são totalmente conhecidos universalmente. Geralmente
os filmes de drama orientais causam impacto pelas espetaculares imagens que
mostram belíssimas paisagens, figurinos e cenários, mas aliados a um excelente
roteiro podem se transformar em obras de importância ímpares. Com fotografia e
locações de encher os olhos, esta produção é um belíssimo exemplar de amor e
contemplação as artes, porém, mais uma vez a lei do mercado faz valer a sua
força. Se não há demanda não há oferta e vice-versa. Por desinteresse do
público ou pouco caso das distribuidoras este é mais um excelente filme
esquecido e fora do mercado. Ou será que ainda nos dias atuais sofremos com
ameaças a liberdade cultural?
Drama - 116 min - 2001
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