NOTA 8,0 Animação dirigida por pupilo de Hayao Miyazaki preserva características que consagraram sua carreira e seu estilo de cinema |
Desde que conquistou uma penca de
prêmios por A Viagem de Chihiro,
incluindo o Urso de Ouro no Festival de Berlim e o Oscar de Melhor Filme de
Animação, o nome Hayao Miyazaki se transformou em uma grife, uma marca que
inspira confiabilidade, criatividade e credibilidade e por tabela os mesmos
predicados se estendem ao seu estúdio de cinema, o Ghibli. Desde então
cinéfilos aguardam com ansiedade cada trabalho novo do animador, embora já
esteja com bastante idade, e ficam na expectativa de que suas obras antigas
venham ainda a ser relançadas para novas gerações apreciarem. Com a boa
receptividade de O Castelo Animado,
mais um de seus projetos que ganhou projeção em parte por conta de mais uma
indicação da Academia de Cinema, chegou a ser lançado diretamente em DVD no
Brasil o simpático e agradável O Reino dos Gatos que contou com a
publicidade de ser uma realização dos mesmos criadores do citado vencedor do
Oscar. Todavia, Miyazaki neste caso cedeu o cargo de direção para um de seus
pupilos, Hiroyuki Morita, um dos animadores que há anos colaborava com seu
estúdio. Realmente as características do mestre da animação oriental estão em
cada cena deste desenho, guardadas as devidas proporções obviamente, provando
que seu estilo foi perpetuado e continuará encantando novas gerações através do
talento e criatividade de novos profissionais. O roteiro de Reiko Yoshida é
bastante simples, mas agregado ao estilo visual tradicional, praticamente uma
novidade em tempos da febre dos desenhos digitais, o resultado final é
delicioso e com potencial para agradar a todas as idades. Haru é uma garota que
leva uma vida normal como qualquer outra da sua idade, porém, considera sua
rotina um tanto monótona e parece não gostar muito da escola. As coisas mudam
completamente a partir do dia que ela encontra na rua um lindo gato carregando
uma caixinha de presente na boca. Distraído, ele quase é atropelado, mas a
jovem o salva e como agradecimento ele fica de pé sustentado por suas duas
patas traseiras e desanda a falar. Assustada ela foge, mas na mesma noite fatos
estranhos passam a ocorrer, por exemplo, quando está indo dormir Haru escuta
barulhos do lado de fora de sua casa, sons provocados por um cortejo felino que
parece querer chamar sua atenção.
Os bichanos que repentinamente
cercam a casa de Haru vieram diretamente do Reino dos Gatos e o próprio Rei dos
felinos vem pessoalmente agradecê-la por ter salvo nada mais nada menos que a
vida de seu filho, o Príncipe Lune. Como recompensa ela é avisada que a partir
da manhã seguinte sua vida será diferente com novidades acontecendo a sua
volta. Dito e feito. Ao acordar, o jardim de sua residência está repleto de
plantas que lembram a rabos de gatos e no armário que usa na escola se
surpreende ao encontrar felinos caçando ratos. Por onde quer que olhe estes
animais estão cercando-a, o que a deixa levemente inquieta, mas seu humor muda
quando é convidada para visitar o Reino dos Gatos pessoalmente, uma espécie de
mundo paralelo, porém, marcado pela relação conturbada entre felinos
representantes da elite e os plebeus que não confiam totalmente no caráter do Rei.
Qualquer semelhança com constantes e antigos problemas da realidade dos humanos
não é mera coincidência. Ao aceitar fazer a visita, Haru escuta uma voz dizendo
que ela deve encontrar o gato branco que a levaria até o Barão. Sem dar muita
importância ao aviso, quando menos espera um felino de pêlos claros como a neve
cruza seu caminho e a leva até uma pequena casa onde vive o tal Barão, um bichano
metido a esperto e bem vestido. É aí que a jovem percebe que o que acreditava
ser uma grande brincadeira no fundo é um tanto sério. Ela foi atraída até
aquelas terras porque o Rei deseja vê-la casada com seu filho e logo uma
comitiva real chega para buscá-la. O fato de ser humana não é problema, pois
aos poucos ela está se transformando em uma felina também podendo assim o
matrimônio ser realizado, mas Barão e o gato branco farão o possível para
impedir a união e devolvê-la ao mundo dos humanos. Como é de praxe nas
animações da grife Ghibli, a personagem principal mais uma vez está envolvida
em um conflito fantasioso e abandona sua realidade para conhecer um mundo a
parte onde tudo parece possível e repleto de personagens bizarros. Por conta da
curiosidade em seguir um gato branco e parar em uma terra desconhecida, há quem
possa achar semelhanças entre esta obra e o clássico conto “Alice no País das
Maravilhas”, mas na realidade a inspiração do projeto, cuja ideia inicial
partiu de Miyazaki, surgiu de uma graphic-novel chamada “Baron, The Cat Baron”,
de Aoi Hiragi, lembrando que os japoneses adoram gatos, animais considerados
símbolos de felicidade e sorte.
Estreando na direção solo de
longas-metragens, Morita foi bastante feliz com suas escolhas e o resultado que
obteve. Embora não seja um dos principais títulos do estúdio Ghibli e sua
repercussão seja consideravelmente bem inferior a que teve os premiados longas
de Miyazaki já citados aqui, é certo que este passeio maluco por um mundo
habitado por felinos vivendo situações que fazem metáforas ao comportamento
humano possui uma narrativa muito mais acessível ao público infantil. Atrelado
ao visual humilde que ostenta esta obra facilmente pode ser rotulada como um
produto exclusivo para crianças pequenas, mas as coisas não são bem assim. A
introdução simples e de fácil assimilação pode enganar, mas o que está por vir
é uma aventura bem elaborada e com momentos de grande intensidade. Obviamente
não espere sequências de pura adrenalina, embaladas por musiquinhas pop e
entrecortadas por rápidas piadas, modelo que marca as animações
computadorizadas. A simplicidade da proposta é refletida no estilo narrativo e
até mesmo no abuso de tons pastéis em vários momentos, mas vale lembrar que
visualmente há um interessante contraponto entre o mundo sem graça que Haru
enxerga em sua realidade e o universo frenético que conhece quando está prestes
a se tornar uma gata, pequenas sutilezas que fazem toda a diferença. A
construção dos personagens também é ponto forte da obra, cada qual com
características de fácil identificação e até a turma de “vilões”, se é que eles
existem na trama, acabam parecendo simpáticos ao espectador devido a leveza do
texto que conta com certo ar irônico, principalmente por no fundo tratar das
relações que tentam ser estabelecida entre diferentes tipos de criaturas, não
faltando nem mesmo a hierarquia de separar os nobres e os plebeus, os que
mandam e aqueles que devem obedecer, ainda que neste segundo grupo exista um bom
número rebeldes que são contra as ideias e atos do Rei. O Reino dos Gatos, no
final das contas, acabou se tornando uma animação que infelizmente não achou
seu público. As crianças podem erroneamente considerá-lo complexo demais e os
adultos um produto infantilizado ao extremo, mas estes são pré-julgamentos que
devem ser esquecidos. Quem gosta de boas histórias e acredita no potencial das
animações em estilo mais convencional deve se entreter e se emocionar, ainda
mais se prestar atenção na belíssima trilha sonora que, para não quebrar a
tradição desse tipo de filme, trata de concluir a produção com uma belíssima
canção. Ok, só quem entende japonês deve compreender a letra da música, mas ao
menos a melodia tem o poder de ser universal e tocar corações.
Animação - 72 min - 2002
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