NOTA 8,0 Suspense dinamarquês envolve espectador com trama que respeita cadência de emoções e clima melancólico |
Produções a respeito de assassinos psicopatas que agem
discretamente conseguindo se infiltrar em empresas ou núcleos familiares ou de
amizades usando sua simpatia ou inteligência surgem aos montes todos os anos e
ajudam a manter a engenharia da indústria de Hollywood funcionando
perfeitamente tal quais os filmes protagonizados por seriais killers mascarados
também colaboram com generosas quantias de dinheiro. Embora sejam obras com
temas repetitivos e que não acrescentam nada aos subgêneros que representam
elas geralmente conseguem fazer sucesso no mercado de home vídeo, uma tradição
que vem desde os tempos do boom das locadoras e das fitas VHS. E não é só o
cinema americano que se beneficia da fórmula dos filmes de vilões canastrões que
agem de cara limpa tendo como principal arma a lábia. Outros países também
investem em produções do tipo, mas infelizmente quando chegam ao Brasil passam
em brancas nuvens. Entre produtos totalmente descartáveis é sempre possível dar
uma garimpada nas filmografias estrangeiras e encontrar alguns títulos
interessantes e com uma pegada comercial. Como é bom ter a surpresa de assistir a um filme que você esperava uma coisa e
de repente ele se revelar muito superior. Esse é o caso do suspense Mistério
na Vila, um excelente exemplar da ainda pouco conhecida filmografia da
Dinamarca. A produção cinematográfica deste país teve seu grande momento em
1995, época em que surgiu o movimento denominado Dogma 95. O manifesto criado
pelos cineastas Lars Von Trier e Thomas Vintenberg, na época ainda não famosos,
era uma tentativa de resgatar a essência do cinema, aquele feito em nome da
arte e não a favor da sua exploração comercial. Restringindo ao máximo ou até
mesmo abolindo o uso de recursos tecnológicos e investindo muito mais em
enredos e personagens interessantes, tal movimento experimental gerou longas
festejados e outros tantos duramente rejeitados até mesmo pelos críticos.
Curiosamente, o que era para causar uma brusca ruptura com o cinema comercial
acabou de certa forma gerando um efeito contrário. Hoje em dia ter as mídias
originais de títulos marcantes desta fase como, por exemplo, Italiano Para Principiantes, Festa de
Família e Os Idiotas, tornaram-se
verdadeiros objetos de desejos de muitos cinéfilos, alguns que gastam o que for
preciso para adquiri-las já que são raridades.
Exposto o
estilo predominante do cinema dinamarquês, ou pelo menos aquele que consegue
romper as barreiras do país e chegar a outros territórios, fica mais fácil
compreender porque o diretor Jannik Johansen, da comédia E Agora? Roubei um Rembrandt, não construiu um suspense
convencional, embora sua obra não seja extremamente crua como podemos perceber
pela excepcional fotografia que capta com perfeição a insípida e gelada
paisagem do interior da Dinamarca que serve de palco para uma intrigante e
envolvente história roteirizada pelo próprio cineasta em pareceria com Anders
Thomas Jensen. O título
nacional é uma infeliz e genérica escolha. Pode passar a errônea ideia deste
thriller ser mais uma batida produção sobre uma pequena cidade do interior
assombrada por almas penadas ou por um assassino mascarado, mas seu enredo,
apesar de parecer simplório e previsível, é surpreendente, muito por conta do
estilo narrativo adotado que respeita a cadência de emoções, a cenografia e
locações que impõem um envolvente e ao mesmo tempo desconfortante clima de
tensão e aos personagens distantes dos arquétipos que o cinema americano ajudou
a propagar mundo afora. Jacob (Nikolaj Lie Kaas) é um rapaz muito preocupado
com sua irmã Julie (Lotte Bergstrom), que há alguns anos sofreu um acidente que
limitou seus movimentos corporais, prendendo-a a uma cadeira de rodas, e também
sua capacidade de raciocinar. O que lhe tira o sono no momento é o repentino
casamento dela com Anker (Nicolas Bro), um homem que ela conheceu num bate-papo
pela internet. Jacob estranha a rapidez com que o relacionamento caminha, mas
mesmo assim apóia a irmã que está muito feliz. Todavia, após a festa de
casamento, durante a noite, o inesperado acontece: Julie comete suicídio
cortando os próprios pulsos. Como ela já tinha tendência a cometer atos
suicidas o caso poderia passar apenas como uma triste ocorrência, mas o irmão
da vítima não acredita. Perturbado, ele deixa de lado sua vida pessoal, passa a
investigar o passado do recente ex-cunhado e encontra evidências que reforçam
suas desconfianças, como um número de celular que não existe e um pequeno
recorte de jornal guardado em um livro com a mensagem “obrigado por tudo”, as
mesmas palavras publicadas no obituário de Julie. Ao procurar Anker na Vila de
Murk, sua terra natal, Jacob se surpreende ao saber que em um curto espaço de
tempo ele já está com um novo casamento marcado. Causa mais desconfiança ainda
o fato da nova noiva também ser uma deficiente e o encontro ter sido propiciado
pela internet. Porém, investigando sobre essas coincidências, Jacob pode estar
trilhando um caminho perigoso para ele mesmo.
Livre dos clichês dos suspenses
convencionais, ou melhor, escamoteando-os muito bem, esta obra trabalha com um
argumento forte e realista, o que instiga ainda mais o espectador. Quase todos
os dias a mídia divulga casos de maníacos que cometem atrocidades com pessoas
ingênuas que conhecem pela internet. Aqui o enfoque é bem original. Um maníaco
que caça deficientes enganando-as com propostas de casamentos usando toda a sua
lábia. Como as vítimas já se sentem naturalmente abandonadas e um fardo para a
família devido as suas limitações fica fácil levá-las no bico. É como estender
uma mão para levantar alguém que tenha caído. Ninguém que se sente acuado
recusa. Johansen faz uma introdução das melhores e até toma a corajosa atitude
de revelar o tal mistério do título lá pela metade do filme. É certo que é
impossível imaginar que alguém até então já não tivesse o descoberto desde os
primeiros minutos, mas o roteiro ainda consegue alinhavar certas situações que
podem gerar dúvidas e prender a atenção. Desse momento em diante, a
responsabilidade do interesse da fita fica por conta das excelentes atuações dos
protagonistas. O “herói” é totalmente crível, um homem inconformado e indeciso,
enquanto o “vilão” consegue manter até o fim sua aparência de pessoa do bem e
ingênua que esconde um ser cruel e impiedoso. Não é surpresa alguma revelar
seus perfis. Embora seja possível aplicar rótulos a eles apenas com uma rápida
leitura da sinopse o grande trunfo da produção é a naturalidade com que eles se
apresentam, assim ainda sendo possível criar dúvidas a respeito da idoneidade
de um e a paranoia do outro. Vencedor de alguns prêmios em festivais
independentes, Mistério na Vila é um filme que merece ser descoberto,
principalmente por mostrar o suspense de uma maneira diferenciada, investindo
muito pouco em violência visual, e também por trazer assuntos interessantes à
tona. Além de podermos refletir sobre a mente doentia do assassino e a condição
mental e frágil de suas vítimas, o longa também serve como mais um lembrete de
que a internet é um terreno perigoso, embora o roteiro não bata incessantemente
nesta tecla, mas mesmo assim o recado está dado.
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