NOTA 8,5 Homenagem à famosa culinarista americana é saborosa e tenta criar um link com novas gerações |
Muitos consideram a cozinha o melhor lugar de
uma casa e é talvez por isso que os filmes que tem como pano de fundo o mundo
gastronômico nos passem sensações de conforto e aconchego únicas. São várias as
produções que utilizam artifícios da culinária para seduzir os espectadores, o
que confere a esses trabalhos visuais de dar água na boca e que envolvem
rapidamente a quem assiste. Julie e Julia é mais um título para
engrossar este caldo que poderia ser catalogado como um filme gostoso ou
agradável, mas nas categorias convencionais é difícil classificá-lo. Não é um
dramalhão, porém, também não é de provocar gargalhadas. Talvez essa indefinição
de gênero tenha colaborado para a morna recepção da obra por parte da crítica e
do público. Todos que deram ou ainda darão atenção a este trabalho certamente
tem uma única justificativa na ponta da língua: Meryl Streep. A veterana atriz
conquistava sua 16º indicação ao Oscar recriando Julia Child, uma americana que
no final da década de 1940 se muda para Paris para acompanhar seu marido Paul
(Stanley Tucci) em seu novo endereço de trabalho, mas a mudança significaria
muito mais para ela própria. Sem filhos ou emprego, a esposa do diplomata não
quer desperdiçar seu tempo ocioso e passa a procurar alguma atividade que lhe
dê prazer, encontrando isso em um curso de culinária, embora sua intimidade com
a cozinha fosse mínima. O que poderia ser apenas um passatempo acabou ganhando
proporções que Julia não esperava. Alguns anos mais tarde ela publicou um
best-seller gastronômico e conseguiu ingressar na televisão para apresentar um
programa de culinária no qual ela também divertia as pessoas com seu jeito de
ser, voz diferenciada e sua curiosa imagem de uma mulher com quase 1m90 de
altura. Seu sucesso seria fruto de seu trabalho ou de sua simpatia e bom humor?
A mistura de ambos certamente, tanto é que já na casa dos setenta até oitenta e
poucos anos ela ainda estava na ativa e seu livro “Dominando a Arte da Culinária
Francesa” chegava a sua 49º edição no ano de 2004 quando faleceu. O longa não
mostra os últimos anos de vida da culinarista, mantendo o foco entre os anos 40
e 60, justamente o período em que tomou gosto pela arte de cozinhar e decidiu
levar seus conhecimentos da cozinha francesa para os americanos que segundo ela
não costumavam fazer pratos apetitosos. A parte do roteiro que nos apresenta um
pouco da vida de Julia chama a atenção por conter ingredientes interessantes. A
personagem passa ao espectador de maneira sutil a idéia de como as mulheres
viviam naquela época posterior a Segunda Guerra Mundial. Elas eram submissas ao
marido, tinham muito tempo livre e não estavam inseridas no mercado de
trabalho. Seu destaque nesse cenário engessado se deve ao fato de seu sucesso
profissional e pelo seu jeito alegre de viver e sem repressões já que seu
marido sempre a apoiou em todas as suas decisões, ao contrário de outros homens
da época que eram enérgicos com suas companheiras. É interessante que Meryl e
Tucci dividiram cenas também em O Diabo
Veste Prada em papéis completamente diferentes, mas em ambos os casos a
atriz acabou se sobressaindo com suas minuciosas composições físicas e
comportamentais, mas nada que desmereça o trabalho do ator.
Já Amy Adams surge como Julie Powell em uma
trama paralela passada em meados dos anos 2000, cujo elo com a Julia de décadas
atrás é seu famoso livro de receitas. A moça está prestes a completar trinta
anos, mas está frustrada com a vida que leva e busca um objetivo diferenciado
para seguir pelos próximos meses. Ajudando em um grupo de apoio aos
necessitados após perder seu emprego em uma editora, ela recebe incentivo do
marido Eric (Chris Messina) para investir no ramo culinário. Assim surge a
idéia de fazer um blog. Ela prepararia as mais de 500 receitas do livro de
Julia, sua inspiração, no prazo máximo de um ano e colocaria na internet todas
as suas considerações e impressões. O problema é que seu empenho em cumprir o
desafio que impôs a si mesma acaba diminuindo seu tempo para o marido e demais
atividades, o que gera certo distanciamento do casal. Este trecho contemporâneo
não parece ser tão interessante a primeira vista, mas no futuro pode funcionar
como um registro do início do século 21, período marcado pelo individualismo
ou, na melhor das hipóteses, pela comunicação à distância, o mundo virtual se
apossando da realidade, fato que é evidenciado pelo descontentamento de Eric em
relação ao novo comportamento da esposa. É curioso que inicialmente ou tal blog
praticamente não era acessado, mas pouco a pouco caiu no gosto popular a tal ponto
que Julie conseguiu realizar seu grande sonho: escrever um livro. Praticamente
todo o conteúdo que publicou on line recebeu uma revisão para se adequar às
páginas impressas da publicação que leva o mesmo título do filme e que foi
lançada em 2005. Sendo assim, estas duas histórias que se alternam ao longo do
filme e que tem como fio condutor o apreço pela culinária não foram criadas
especialmente para dar um tom poético à obra, mas é fruto de uma curiosa
combinação de dois livros distintos que formaram um conjunto agradável e
eficiente mostrando paralelamente como duas personalidades tão distintas se
completam de alguma forma, ainda que vivendo em épocas opostas. A parte da
famosa Julia foi inspirada no livro de memórias “Minha Vida na França”, escrito
por ela mesma em parceria com Alex Prud’homme.
A receita desta mistura de drama e comédia é
bem convencional e segue o clichê da pessoa que assume um desafio como forma de
superar tristezas e suprir necessidades, o viés comumente utilizado em
produções cujo pano de fundo é o mundo esportivo. A mudança de ambiente
colabora para disfarçar a repetição de tema, assim como o excepcional trabalho
de edição que consegue criar verdadeiras rimas visuais com a intercalação das
duas tramas. Meryl e Amy não chegam a dividir cenas, mas percebe-se um cuidado
especial na seleção de cenas e suas respectivas inserções de forma a criar
paralelos entre as emoções e situações pelas quais as duas protagonistas
passam, sejam positivas ou negativas. São pequenos detalhes e momentos de
alegria ou tristeza que tratam de criar sintonia entre as duas épocas
retratadas. Todavia, o roteiro da também diretora Nora Ephron, especialista em
filmes bobinhos e previsíveis, mas ao mesmo tempo irresistíveis, parece ser
todo apoiado na parte de Julia. Provavelmente não foi intencional. Como já
dito, a época em que ela viveu permite criar e explorar mais aspectos do que a
contemporaneidade de Julie. A impressionante interpretação de Meryl também
colabora e muito. Equilibrando-se em saltos bem altos para alcançar a
inacreditável altura da homenageada, ela capricha na entonação das falas,
esboça certo sotaque e capricha nos gestos e expressões. Para quem nunca ouviu
falar da cozinheira, a personagem pode até parecer caricata e exagerada, mas
segundo registros ela realmente era uma figura excêntrica, cheia de trejeitos e
com uma voz muito característica. Muitos apontam que a longa duração é um dos
problemas desta produção. De fato uns vinte ou trinta minutos a menos seriam
benéficos, mas vale elogiar Nora pela ousadia em experimentar uma narrativa
entrecortada, algo diferenciado em seu adocicado currículo. As tramas vistas
separadamente poderiam resultar em algo minguado, mas juntas se completam e
crescem. Julie e Julia em suma é delicioso, literalmente, mas ao que
tudo indica deve envelhecer de forma desmerecida e perder a data de validade em
breve, tornando-se uma obra que provavelmente só será lembrada por mais uma
interpretação vigorosa de Meryl, assim como tantos outros filmes da filmografia
da atriz. De qualquer forma, a massa e o recheio desta produção são fartos e de
bom gosto, mas faz falta uma cobertura caprichada para torná-la excepcional.
Comédia - 123 min - 2009
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