sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

QUEM QUER SER UM MILIONÁRIO?

NOTA 9,0

Drama mostra lado pouco
esplendoroso da Índia através da
história de rapaz de origem humilde
que literalmente vence na vida
Entra ano e sai ano e muita gente continua com suas simpatias e rituais em busca de ajuda para conseguir uma vida financeira confortável. Bem, já que a maioria tem esse desejo, a dica é fechar o ano assistindo Quem Quer Ser Um Milionário?, elogiada e premiada produção americana que mostrou ao mundo uma Índia realista, pobre, repleta de problemas, mas ainda assim com uma população esperançosa. A sugestão não é só pelo fato de ter dinheiro envolvido na história, mas principalmente pela mensagem de otimismo e reflexiva que o filme nos deixa. A câmera do eclético diretor Danny Boyle apresenta o cotidiano do povão que por coincidência não difere muito da realidade das áreas menos favorecidas brasileiras. Até mais interessante que o próprio filme em si é a sua trajetória desde a concepção até o clímax, a festa do Oscar. Um diretor que já trabalhou com a juventude rebelde, lidou com zumbis, frequentou uma ilha aparentemente deserta e se aventurou pela ficção científica em uma época em que o gênero estava praticamente sepultado, só prova que ele não tem medo de experimentar, testar novos temas e ambientações. Por isso não é para se estranhar a sua audácia de voltar suas atenções para um país pouco conhecido e procurar o que havia de mais comum e pobre por lá. O que é espantoso mesmo é a recepção acalorada do público e crítica americana a uma obra com diversos diálogos em língua estrangeira, o hindu, o idioma oficial da índia, o que exige o uso de legendas, coisa que os ianques detestam. E o fenômeno não foi só por lá. Com uma mensagem universal, o longa fez uma carreira brilhante por onde passou e conquistou quase todos os prêmios disponíveis da temporada. O único senão é que o elenco foi esnobado nessas festas, algo já esperado por serem desconhecidos até então e pela origem indiana (foram selecionados entre os populares e aprenderam a atuar “pegando no batente”). Curiosamente, na própria Índia houve rejeição a este trabalho, muito porque condenaram a opção de explorar o universo de favela, mas se a história exige tal cenário não se pode fazer nada. Se a ambientação causa incômodo por expor mazelas sociais, o cinema nada mais fez que mostrar a realidade. Queixas devem ser direcionadas a governantes e afins para mudar esse quadro. O realismo da obra se deve muito ao auxílio do dramaturgo e cineasta indiano Loveleen Tandan, contratado para ceder uma minuciosa pesquisa sobre seu país, mas cuja importância foi tanta que acabou recebendo o crédito de co-diretor.

Quem gosta de cinema certamente já ouviu falar em Bollywood ou nas estatísticas que apontam a Índia como um dos maiores produtores de cinema do mundo todo. Suas produções geralmente seguem a linha de dramalhão, cenários e figurinos de encher os olhos e seus artistas são venerados pelo público que não hesita em levantar das poltronas do cinema ou do sofá de casa para dançar com eles, afinal música é um elemento que não pode faltar. Das características bollywoodianas, Boyle absorveu praticamente todos os elementos-clichês, porém, optou por aliar o viés dramático ao contexto social que escolheu para trabalhar, decepcionando assim quem esperava ver um pouco mais a respeito da cultura cinematográfica local. O visual Kitsch é adotado apenas em momentos estratégicos, sendo a estética dominante crua e por vezes muito cruel. É praticamente uma versão indiana do nosso Cidade de Deus, pelo menos inicialmente quando estamos conhecendo o mundo em que vive o protagonista. A trama gira em torno de Jamal Malik (Dev Patel), um jovem órfão que junto com seu irmão Samir (Madhur Mittal) cresceu nas favelas de Mumbai em meio a criminosos e outras pessoas do pior caráter possível. Aprendeu que para sobreviver em uma sociedade hostil precisava aproveitar as oportunidades e não hesitou, por exemplo, em se passar por guia turístico para ganhar alguns trocados. A virada de jogo pode estar em um programa de televisão onde é preciso responder a uma série de perguntas para ganhar um dinheiro que mudaria completamente a vida de qualquer um. Bem, pelo menos para aqueles que vivem em uma situação de miséria em um país onde as chances para crescer profissionalmente ou até mesmo pessoalmente são as mais minguadas possíveis. Na verdade, o que o leva a participar dessa espécie de "Show do Milhão" é o amor. Ele espera que sua amiga e paixão de infância Latika (Freida Pinto) o assista e se apaixone pela imagem de um rapaz que agora é rico e famoso. Por esse resumo, muitos podem falar já vi essa história contada de diversas formas. Realmente, o enredo é comum, mas a cada nova adaptação muda de figura. Aqui, o diretor foi habilidoso em procurar uma ambientação diferente, pessoas com características físicas marcantes, dar ritmo para a narrativa através de trucagens de câmera e fugindo do estilo dramalhão lacrimejante. Assim, a velha receita do indivíduo humilde que depois de muita batalha vence na vida, não só financeiramente falando, ganhou uma cara nova, além de ser temperada com uma deliciosa trilha sonora que realça situações e sentimentos, uma perfeita mistura de música eletrônica com instrumentos característicos. É preciso também dar crédito aos intérpretes que vivem os personagens principais em suas fases de infância e adolescência, Ayush Mahesh Khedekar e Tanay Chheda (Jamal), Azharuddin Mohammed Ismail e Ashutosh Lobo Gajiwala (Samir) e Rubiana Ali e Tanvi Ganesh Lonkar (Latika), todos excelentes e muito naturais.

Vale ressaltar que a narrativa não é linear. Através de flashbacks é que conhecemos a infância e a adolescência do protagonista. O presente é apresentando com Jamal sendo forçado a responder questionamentos em uma delegacia, pois a própria equipe responsável pelo programa de perguntas e respostas estranha como uma pessoa sem estudo ou acesso a cultura conseguiu responder tudo e faturar a bolada, deixando clara a visão preconceituosa destas pessoas que desejam se comunicar com as massas, mas no fundo subestimam sua inteligência. Desconfiam que ele trapaceou no jogo e insultam sua honra da forma mais covarde possível. É a partir dos relatos que faz ao delegado (Irfran Khan) que ficamos sabendo de detalhes sobre seu passado, inclusive sobre o violento incidente que o separou de Latika. A estrutura do texto de Simon Beaufoy, baseado no livro “Sua Resposta Vale um Milhão”, de Vikas Siwarup, não se torna cansativa graças aos diversos eventos que narra a cada volta no tempo e à experiência de Boyle que conseguiu imprimir um ritmo ágil à fita recorrendo a eficientes movimentos de câmera e edição precisa e fluente, recursos que combinados a excelente fotografia, direção de arte e figurinos só colaborou para deixar as cenas ainda mais estimulantes. Aliás, todos esses predicados ficam evidentes próximo do final quando é feita uma rápida seleção com algumas cenas marcantes da história de Jamal, como se fosse literalmente um filme que passasse em sua cabeça. Esta produção é repleta de pontos muito pertinentes à sociedade contemporânea para serem analisados. Atrás de uma história de amor travestida de denúncia social, encontramos um mosaico de assuntos a serem analisados, como a exploração de menores, a falta de um alicerce familiar na criação de uma pessoa, a busca pela fama e dinheiro que move o homem atual e a globalização. Esses são alguns dos pontos relevantes, além de também ser possível tecer comentários interessantes a respeito da recepção do filme, novas maneiras de se fazer cinema e a inclusão de diferentes culturas ao fechado mercado cinematográfico americano e porque não mundial também. Não que esta seja a primeira vez que a Índia interage com os EUA. A cineasta Mira Nair fez isso antes de Boyle com Nome de Família, de forma mais modesta e tradicional, mas sem medo das críticas ou rejeição do público. No fundo, Quem Quer Ser Um Milionário? é uma obra que reflete a realidade de sua época de filmagem, um cenário que deve perdurar ainda por muitos anos. A escolha de um protagonista que não teria as menores chances de sobreviver em um mundo capitalista, mas que chega ao topo através de um meio de comunicação e trazendo na bagagem suas experiências de vida, toca diretamente no imaginário de bilhões de pessoas mundo a fora que não enxergam nos estudos caminhos para o futuro, mas sim na popularidade, no uso da imagem, um pensamento medíocre que infelizmente rege a mente de muitos, ainda mais em tempos que realities shows, celebridades instantâneas e a exposição constante no mundo virtual são marcas registradas. Assista, reflita e leve a visão otimista, claramente explícita, para o resto do ano que se inicia.

Vencedor do Oscar de filme, direção (Danny Boyle), roteiro adaptado, fotografia, edição, trilha sonora, canção e som

Drama - 120 min - 2008 

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