NOTA 9,0 Drama mostra lado pouco esplendoroso da Índia através da história de rapaz de origem humilde que literalmente vence na vida |
Entra ano e sai ano e muita gente continua com suas
simpatias e rituais em busca de ajuda para conseguir uma vida
financeira confortável. Bem, já que a maioria tem esse desejo, a dica é fechar
o ano assistindo Quem Quer Ser Um Milionário?, elogiada e premiada produção
americana que mostrou ao mundo uma Índia realista, pobre, repleta de problemas,
mas ainda assim com uma população esperançosa. A sugestão não é só pelo fato de
ter dinheiro envolvido na história, mas principalmente pela mensagem de
otimismo e reflexiva que o filme nos deixa. A câmera do eclético diretor Danny
Boyle apresenta o cotidiano do povão que por coincidência não difere muito da
realidade das áreas menos favorecidas brasileiras. Até mais interessante que o
próprio filme em si é a sua trajetória desde a concepção até o clímax, a festa
do Oscar. Um diretor que já trabalhou com a juventude rebelde, lidou com
zumbis, frequentou uma ilha aparentemente deserta e se aventurou pela ficção científica
em uma época em que o gênero estava praticamente sepultado, só prova que ele
não tem medo de experimentar, testar novos temas e ambientações. Por isso não é
para se estranhar a sua audácia de voltar suas atenções para um país pouco
conhecido e procurar o que havia de mais comum e pobre por lá. O que é
espantoso mesmo é a recepção acalorada do público e crítica americana a uma
obra com diversos diálogos em língua estrangeira, o hindu, o idioma oficial da
índia, o que exige o uso de legendas, coisa que os ianques detestam. E o
fenômeno não foi só por lá. Com uma mensagem universal, o longa fez uma
carreira brilhante por onde passou e conquistou quase todos os prêmios
disponíveis da temporada. O único senão é que o elenco foi esnobado nessas
festas, algo já esperado por serem desconhecidos até então e pela origem
indiana (foram selecionados entre os populares e aprenderam a atuar “pegando no
batente”). Curiosamente, na própria Índia houve rejeição a este trabalho, muito
porque condenaram a opção de explorar o universo de favela, mas se a história
exige tal cenário não se pode fazer nada. Se a ambientação causa incômodo por
expor mazelas sociais, o cinema nada mais fez que mostrar a realidade. Queixas
devem ser direcionadas a governantes e afins para mudar esse quadro. O realismo
da obra se deve muito ao auxílio do dramaturgo e cineasta indiano Loveleen
Tandan, contratado para ceder uma minuciosa pesquisa sobre seu país, mas cuja
importância foi tanta que acabou recebendo o crédito de co-diretor.
Quem gosta de cinema certamente já ouviu falar em Bollywood
ou nas estatísticas que apontam a Índia como um dos maiores produtores de
cinema do mundo todo. Suas produções geralmente seguem a linha de dramalhão,
cenários e figurinos de encher os olhos e seus artistas são venerados pelo
público que não hesita em levantar das poltronas do cinema ou do sofá de casa
para dançar com eles, afinal música é um elemento que não pode faltar. Das
características bollywoodianas, Boyle absorveu praticamente todos os elementos-clichês,
porém, optou por aliar o viés dramático ao contexto social que escolheu para
trabalhar, decepcionando assim quem esperava ver um pouco mais a respeito da
cultura cinematográfica local. O visual Kitsch é adotado apenas em momentos
estratégicos, sendo a estética dominante crua e por vezes muito cruel. É
praticamente uma versão indiana do nosso Cidade de Deus, pelo menos
inicialmente quando estamos conhecendo o mundo em que vive o protagonista. A
trama gira em torno de Jamal Malik (Dev Patel), um jovem órfão que junto com
seu irmão Samir (Madhur Mittal) cresceu nas favelas de Mumbai em meio a
criminosos e outras pessoas do pior caráter possível. Aprendeu que para
sobreviver em uma sociedade hostil precisava aproveitar as oportunidades e não
hesitou, por exemplo, em se passar por guia turístico para ganhar alguns
trocados. A virada de jogo pode estar em um programa de televisão onde é
preciso responder a uma série de perguntas para ganhar um dinheiro que mudaria
completamente a vida de qualquer um. Bem, pelo menos para aqueles que vivem em
uma situação de miséria em um país onde as chances para crescer
profissionalmente ou até mesmo pessoalmente são as mais minguadas possíveis. Na
verdade, o que o leva a participar dessa espécie de "Show do Milhão"
é o amor. Ele espera que sua amiga e paixão de infância Latika (Freida Pinto) o
assista e se apaixone pela imagem de um rapaz que agora é rico e famoso. Por
esse resumo, muitos podem falar já vi essa história contada de diversas formas.
Realmente, o enredo é comum, mas a cada nova adaptação muda de figura. Aqui, o
diretor foi habilidoso em procurar uma ambientação diferente, pessoas com
características físicas marcantes, dar ritmo para a narrativa através de
trucagens de câmera e fugindo do estilo dramalhão lacrimejante. Assim, a velha
receita do indivíduo humilde que depois de muita batalha vence na vida, não só
financeiramente falando, ganhou uma cara nova, além de ser temperada com uma
deliciosa trilha sonora que realça situações e sentimentos, uma perfeita mistura
de música eletrônica com instrumentos característicos. É preciso também dar
crédito aos intérpretes que vivem os personagens principais em suas fases de
infância e adolescência, Ayush Mahesh Khedekar e Tanay Chheda (Jamal),
Azharuddin Mohammed Ismail e Ashutosh Lobo Gajiwala (Samir) e Rubiana Ali e
Tanvi Ganesh Lonkar (Latika), todos excelentes e muito naturais.
Vale ressaltar que a narrativa não é linear. Através de
flashbacks é que conhecemos a infância e a adolescência do protagonista. O
presente é apresentando com Jamal sendo forçado a responder questionamentos em
uma delegacia, pois a própria equipe responsável pelo programa de perguntas e
respostas estranha como uma pessoa sem estudo ou acesso a cultura conseguiu
responder tudo e faturar a bolada, deixando clara a visão preconceituosa destas
pessoas que desejam se comunicar com as massas, mas no fundo subestimam sua
inteligência. Desconfiam que ele trapaceou no jogo e insultam sua honra da
forma mais covarde possível. É a partir dos relatos que faz ao delegado (Irfran
Khan) que ficamos sabendo de detalhes sobre seu passado, inclusive sobre o
violento incidente que o separou de Latika. A estrutura do texto de Simon
Beaufoy, baseado no livro “Sua Resposta Vale um Milhão”, de Vikas Siwarup, não
se torna cansativa graças aos diversos eventos que narra a cada volta no tempo
e à experiência de Boyle que conseguiu imprimir um ritmo ágil à fita recorrendo
a eficientes movimentos de câmera e edição precisa e fluente, recursos que
combinados a excelente fotografia, direção de arte e figurinos só colaborou
para deixar as cenas ainda mais estimulantes. Aliás, todos esses predicados
ficam evidentes próximo do final quando é feita uma rápida seleção com algumas
cenas marcantes da história de Jamal, como se fosse literalmente um filme que
passasse em sua cabeça. Esta produção é repleta de pontos muito pertinentes à
sociedade contemporânea para serem analisados. Atrás de uma história de amor
travestida de denúncia social, encontramos um mosaico de assuntos a serem analisados,
como a exploração de menores, a falta de um alicerce familiar na criação de uma
pessoa, a busca pela fama e dinheiro que move o homem atual e a globalização.
Esses são alguns dos pontos relevantes, além de também ser possível tecer
comentários interessantes a respeito da recepção do filme, novas maneiras de se
fazer cinema e a inclusão de diferentes culturas ao fechado mercado
cinematográfico americano e porque não mundial também. Não que esta seja a
primeira vez que a Índia interage com os EUA. A cineasta Mira Nair fez isso
antes de Boyle com Nome de Família, de forma mais modesta e tradicional, mas
sem medo das críticas ou rejeição do público. No fundo, Quem Quer Ser Um
Milionário? é uma obra que reflete a realidade de sua época de filmagem, um cenário
que deve perdurar ainda por muitos anos. A escolha de um protagonista que não
teria as menores chances de sobreviver em um mundo capitalista, mas que chega
ao topo através de um meio de comunicação e trazendo na bagagem suas
experiências de vida, toca diretamente no imaginário de bilhões de pessoas
mundo a fora que não enxergam nos estudos caminhos para o futuro, mas sim na
popularidade, no uso da imagem, um pensamento medíocre que infelizmente rege a
mente de muitos, ainda mais em tempos que realities shows, celebridades
instantâneas e a exposição constante no mundo virtual são marcas registradas.
Assista, reflita e leve a visão otimista, claramente explícita, para o resto do
ano que se inicia.
Vencedor do Oscar de filme, direção (Danny Boyle), roteiro adaptado, fotografia, edição, trilha sonora, canção e som
Drama - 120 min - 2008
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