NOTA 7,0 Longa explora as dificuldades pelas quais uma ex-viciada em drogas passa para não ceder às tentações |
Um simples mergulho no mar ou na piscina pode mudar
completamente o astral de uma pessoa. Quando estamos dentro d’água relaxamos e
esquecemos os problemas, mas quando voltamos à superfície não temos como fugir
da realidade. É mais ou menos esta a sensação da protagonista de Sob o Efeito
da Água, uma produção independente australiana que deixa de lado o nacionalismo
e joga de escanteio a imagem do país bem desenvolvido para nos apresentar a
imagem de uma terra corrompida pelo vício das drogas. A trama é desenvolvida no
subúrbio de Sidney, em Cabramatta, região conhecida por ser a capital da
heroína na Austrália. Isso explica o porquê de todos os personagens deste drama
terem algum envolvimento com as drogas. Tracey (Cate Blanchet) é uma ex-usuária
de heroína que dedicou os últimos quatro anos para colocar ordem na sua vida.
Além de se livrar do vício, vive com a mãe, a super protetora Janelle (Noni
Hazlehurst), conseguiu um trabalho digno e agora deseja montar uma lan-house em
parceria com seu chefe, porém, seu passado acaba atrapalhando nas negociações para
um empréstimo no banco. Seu melhor amigo Lionel (Hugo Weaving), um viciado que
já namorou com sua mãe, esta que o culpa pelo vício da filha, não consegue se
livrar das drogas pela decepção de não poder viver um relacionamento amoroso
pleno com um chefão local do tráfico, Brad (Sam Neill), um bissexual que ganha
a vida como traficante de entorpecentes e que acaba passando por um divórcio
escandaloso após serem descobertos seus casos homossexuais com adolescentes.
Lionel, um ex-astro dos esportes, acaba precisando vender as lembranças desta
época boa para sustentar seu vício e sua relação com Tracey é conturbada, mas
ainda assim verdadeira e carregada de sentimentos. Até o irmão da moça, Ray
(Martin Henderson), faz parte deste mundo sujo traficando drogas. Como esquecer o vício em um ambiente desses?
O passado está sempre rondando Tracey, mas ele volta com
força quando Johnny (Dustin Nguyen), o ex-namorado dela que fugiu da cidade
também por causa do vício, retorna e volta a mexer com seu coração. Eles tentam
restabelecer laços, mas ambos voltam a se envolver em negócios perigosos.
Ninguém fica ileso ao entrar nesse mundo e fatalmente cairão também no vício,
nos crimes e problemas com a polícia tornando-se um ciclo vicioso. No caso de
Tracey, ela estava limpa das drogas, mas as más companhias lhe despertam da
abstinência. Ela quer depositar toda a sua energia em um novo trabalho, mas sua
ficha criminal a impede de conseguir o dinheiro desnecessário. Dentro de seu
núcleo familiar as referências também não são as melhores. Assim vencer o vício
uma vez foi apenas uma batalha. Uma nova guerra está para começar. A tentação
dos momentos de loucura de outrora estão novamente próximos a essa mulher e
cabe a ela decidir se quer voltar a navegar em águas turbulentas ou optar pela
calmaria. Cate Blanchett está perfeita como a ex-drogada que tenta reestruturar
sua vida, mas acaba esbarrando com os problemas das drogas a quase todo
instante o que a faz estar constantemente no limite da tentação. Estreando como
diretor de cinema, Rowan Woods revela este conturbado estado emocional através
de luzes difusas, movimentos de câmera ligeiramente desfocados e trilha sonora
melancólica, escolhas que acabam conferindo a obra um toque realista, quase
documental. Ele não faz concessões e recheia seu trabalho com pinceladas de
tudo o que envolve este submundo: suborno, roubo, traições, assassinatos, morte
por overdose e até como as pessoas entram nessa onda. Sem esperanças de
melhorarem de vida, muitos recorrem ao mundo do tráfico visando lucros rápidos
e altos sem pensar nas consequências.
O roteiro de Jacqueline Perske investe na exploração deste
rico painel de personagens e pouco a pouco vai os apresentando ao espectador
desvendando seus mistérios. As ligações entre eles não são rotuladas e
precisamos descobri-las prestando atenção nos diálogos, gestos, olhares e
expressões e a cada nova descoberta nos surpreendemos e admiramos um roteiro
bem amarrado. Até o batido recurso do flashback é dispensado para fazer quem
assiste participar ativamente da narrativa que tem como atrativos a ausência de
maniqueísmos e a originalidade em sua condução. Não podemos dizer claramente
que existem vilões ou mocinhos nesta trama. Todos estão em busca da
sobrevivência e provavelmente por causa deste objetivo é que seguiram o caminho
das drogas. Alguns querem se livrar do vício, outros não, uns lucram com isso
enquanto outros só perdem além do dinheiro também a dignidade. O roteiro
carrega também o mérito de não transformar as substâncias ilícitas no foco da
produção, mas sim como dar continuidade a vida após se envolver com elas. Como
encarar as pessoas? Como conquistar um trabalho honesto com uma ficha suja?
Como lidar com aqueles que ainda são vítimas do vício e que fazem parte do seu
círculo social? Como tentar ajudar alguém a não viver o mesmo drama? Sob o
Efeito da Água tem um final que deixa abertas possibilidades para o espectador
refletir sobre os destinos dos personagens, ainda que fique no ar a intenção de
que literalmente é a esperança a última que morre e que todos eles ainda podem
sair deste inferno em que caíram. Não é um trabalho de fácil digestão, mas de
certa forma é agradável de assistir. Praticamente um soco no estômago dado em
pequenas doses com direito a um relaxante mergulho no final para apaziguar um
pouco a dor.
Drama - 114 min - 2004
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