O que é melhor, ter um produto original
ou uma cópia? A resposta parece óbvia, todos querem a exclusividade, mas optar
pela imitação (não é o mesmo que pirataria) não significa necessariamente a
preferência por algo de qualidade inferior, pelo contrário. Produtos feitos em
série podem sim ter seu valor e até mesmo ressaltar as qualidades de sua
matriz. A discussão é bastante complexa e filosófica e Cópia Fiel coloca em xeque a questão dentro do
ambiente artístico e cultural. Este é o primeiro filme do diretor iraniano
Abbas Kiarostami rodado fora de sua terra natal, uma produção que se preocupa
mais com diálogos e ritmo do que com longas cenas de contemplação e silêncio,
um eficiente cartão de visitas para o cineasta se apresentar a uma fatia de
público que desconhece ou discrimina seu estilo. Na realidade ele prossegue com
seu cinema autoral, mas aqui conta com uma produção mais requintada e com a
estrela Juliette Binoche como protagonista, atriz francesa com passe livre na
indústria de cinema americano, mais um ponto para ajudar a popularizar o
trabalho do cineasta. A trama começa apresentando uma palestra do escritor
inglês James Miller (William Shimell) divagando sobre como a qualidade e o
valor de uma obra dependem do contexto e do olhar particular de quem a analisa.
Assim, defende que a cópia acaba agregando valor ao produto original uma vez
que o valoriza consideravelmente a ponto de alimentar o desejo de ser imitado.
Essa abordagem não se aplicaria somente a conceitos de arte, mas também ao
comportamento humano, mais especificamente aos seus sentimentos.
Miller está na Toscana, na Itália,
divulgando seu mais novo livro (homônimo ao filme) e na plateia está Elle
(Binoche), a dona de uma galeria de arte que comprou vários exemplares para dar
de presente a conhecidos. Quando conseguem se aproximar, eles passam horas a
fio passeando por pontos turísticos e discutindo sobre arte, filosofia e a
complexidade dos seres humanos. Quando fazem uma parada em uma cafeteria, eles
são confundidos como se formassem um casal e por brincadeira passam a se portar
como tal. A partir de então a sensação é que uma subtrama mais importante que a
explorada na introdução passa a desenrolar. Os personagens já não são mais os
mesmos. Enquanto Miller se preocupa a desmistificar conceitos errôneos sobre
arte versus exclusividade e afins, Elle está sofrendo em silêncio, mas em seu
rosto estão estampadas as consequências de anos infelizes de um casamento mal
fadado. Cheia de argumentos para defender seus pontos de vista, Binoche encanta
e seduz com seu jeito ora suave ora intransigente. Ela discute, provoca, seduz,
brinca discretamente, tudo isso em uma interpretação radiante, mas por vezes
melancólica. Já Shimell tem uma atuação correta, seu personagem comporta-se
exatamente como esperamos um intelectual, alguém sereno, perspicaz e que se
manifesta em momentos oportunos, todavia, ele acaba apagadinho diante do
impacto causado por sua companheira de cena.
As situações criadas para os encontros entre Miller e Elle são desiguais, nem sempre mantêm a mesma força dramática, mas nunca deixam de ser instigantes. Kiarostami tem um estilo que permite diversas interpretações, depende do olhar de cada espectador, mas é inegável que aqui preserva uma característica de sua filmografia: o apreço em retratar o sexo feminino. As mulheres iranianas vivem em uma espécie de regime clandestino, praticamente se escondem do mundo, e sobre elas o tempo não parece agir, ao menos sentimentalmente. Elas vivem inertes às condições que lhe foram impostas e, em geral, não buscam mudanças. Aqui ele tem a oportunidade de apresentar e se aprofundar em um outro tipo de natureza feminina. Elle é uma mulher contemporânea, com objetivos e personalidade forte, talvez por isso a personagem se sobressaia ao protagonista masculino. É o interesse e ansiedade do diretor em explorar tal perfil contrapondo-se ao estilo feminino que estava acostumado a registrar. Outra característica das obras do cineasta é que os personagens o tempo todo estão andando, aproveitando-se de belas paisagens da Toscana e dos cenários reais de museus e restaurantes, e conversando sobre os mais variados assuntos.
O que a princípio pare ser um filme difícil e intelectual, aos poucos vai se tornando um instigante quebra-cabeças. O diretor, também roteirista, mostra-se mais preocupado em levantar dúvidas do que propor soluções e assim abrir espaço para o espectador tirar suas próprias conclusões. No início os protagonistas parecem estranhos unidos pelo acaso, mas à medida que o roteiro é desenvolvido surgem sinais de que existe um antigo relacionamento entre eles, possivelmente mal resolvido. Uma única apreciação do filme certamente pode gerar confusões. É preciso assistir ao menos mais uma vez ou fazer um esforço para recapitular mentalmente e acreditar que James e Elle podem sim ser um casal de verdade, mas cujo distanciamento por diversos fatores, principalmente o tempo, os impede de revelar seus reais sentimentos. Os personagens tremem, hesitam, se intimidam e todas as suas reações contribuem para levar ao extremo da intensidade a proposta conceitual do filme, ameaçando os limites entre a verdade suposta do fingimento e a simulação de verdades escondidas.
Não há um segredo bombástico, truques ou trapaças com o intuito de surpreender o público, mas sim um mistério que se esconde e impede sua revelação, o que é muito benéfico ao filme que não fica refém de trucagens para se sustentar. O que está em cena é tudo verdade, mas os personagens cheios de camadas a serem reveladas colocam em dúvida a percepção do espectador. O diretor também lança mão de várias tomadas enfocando reflexos em espelhos e janelas para criar a sensação de que o que estamos vendo não é o real, além de também procurar em gestos e detalhes transmitir a intimidade que une os protagonistas bem como o desconforto que os afasta. Como um caleidoscópio de sensações, Cópia Fiel é um longa que desafia quem assiste a compreender o que de fato é apresentado, o que torna a produção proibitiva aos adeptos de roteiros redondinhos e repletos de explicações. Kiarostami, mesmo não estando em cena, consegue deixar sua marca na tela, mas com sutileza. Ele propõe um jogo entre o que é real e o que é imaginário, o que é original e apenas uma imitação, utilizando para tanto uma situação corriqueira.
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