Nota 4 Criticando a utopia do sonho americano, comédia de humor negro derrapa no mau gosto
Um homem com seus trinta e poucos anos parece levar a vida perfeita. É bem-sucedido profissionalmente, vive em uma confortável casa cercada por um belo jardim, dirige um carro de luxo e tem uma linda esposa e dois filhos pequenos para diariamente sentar-se à mesa para fazer refeições fartas e se sentir como em um alegre comercial de margarina. Contudo, lhe falta algo para ser feliz, mais especificamente uma vida sexual mais ativa como nos tempos da juventude. Seria a trama que permeia o premiado Beleza Americana? Antes fosse. O filme em questão é a comédia Lar Doce Inferno, produção que força ao máximo situações para arrancar gargalhadas, mas só consegue tirar sorrisos amarelos do espectador. De qualquer forma, difícil não ficar tentado a ver até que ponto pode chegar o comerciante de móveis Don Champagne (Patrick Wilson) que, apesar das aparências, não leva um casamento feliz já que Mona (Katherine Heigl), sua esposa, é uma mulher bipolar e que também sofre de transtorno obsessivo compulsivo por organização e realização de metas, assim são constantes seus ataques e mudanças de comportamento quando algo não acontece do jeito que planeja.
O temperamento inconstante da esposa seria o menor dos problemas caso ela tivesse a libido em alta para compensar, mas Mona é totalmente fria quando o assunto é sexo e chega até mesmo a programar os dias em que o casal poderá ter relações. Ficar de olho no calendário para poder transar é broxante, assim Champagne não vê outra forma de saciar suas vontades a não ser pulando a cerca. Apesar dos diversos encontros casuais com variadas mulheres, o casamento do comerciante só é abalado de fato quando ele começa a envolver com Dusty (Jordana Brewster), uma atraente colega de trabalho que inicialmente parece estar querendo apenas diversão sem compromisso, mas não demora muito para se mostrar uma amante tão impertinente quanto a mulher oficial do vendedor. Contudo, ela não tem nenhuma doença de fundo psicológico ou emocional. Seu problema é extorquir o quanto puder de grana do otário para sustentar o mau caráter Murphy (A. J. Buckley), cuja quadrilha está de olho na fortuna do clã dos Champagne.
Um mero vendedor de móveis não teria como bancar uma vida de luxos. Quem na verdade tem dinheiro é Mona que é herdeira de uma rica família, o que deixa seu marido em maus lençóis quando ele passa a ser chantageado pela amante por conta de uma suspeita gravidez que ela deseja levar adiante, obviamente visando uma pensão bastante generosa. Sem saída, Champagne acaba abrindo o jogo com a esposa que reage até com certa calmaria inicialmente, mas não tarda a exigir que o marido acabe o quanto antes com a vida de Dusty. Com tal enredo, os roteiristas Carlo Allen, Ted Elrick e Tom Lavagnino tentaram fazer uma sórdida brincadeira em torno do tão famigerado sonho americano, aquela história da família aparentemente perfeita que da porta de casa para dentro esconde dos vizinhos e amigos problemas e frustrações. Contudo, não espere discussões aprofundadas sobre a temática. O filme não engrena enquanto não chega ao ponto-chave, a exigência de Mona para que o marido se livre da amante de qualquer maneira. E ela não dá a opção do simples rompimento, desejando de fato a morte da rival.
O grande pecado da fita, além de situações um tanto forçadas, é o fato do diretor Anthony Burns não ter pulso firme na direção de atores. Heigl e Wilson não demonstram química alguma e os perfis de seus personagens não são bem trabalhados. Mona a maior parte do filme demonstra ter uma personalidade fria e calculista. A descoberta da traição poderia transformá-la, é fato, mas o problema é que ela assume um comportamento agressivo que beira a caricatura, jamais convencendo como alguém com distúrbios emocionais. Nem de longe vemos algum traço da atriz cativante vista em Vestida Para Casar, mas no caso isso não é um elogio à entrega da moça ao papel. Wilson, mais conhecido pela franquia Invocação do Mal e produções com temáticas mais densas como Pecados Íntimos, parece estar pouco a vontade demonstrando ter consciência que lhe falta timing para a comédia, mas não se intimida a ficar seminu e a simular sexo nas cenas com Brewster.
Lar Doce Inferno parece uma produção feita a toque de caixa, sem apuro narrativo e tampouco de direção. O então estreante Burns peca por exagerar no humor negro culminando em um final capaz de chocar os mais distraídos que, apesar do título, ainda possam acreditar se tratar de uma comédia romântica convencional a respeito das dificuldades de um casal aprendendo a conviver sob o mesmo teto. O romantismo passa longe! Trata-se de um casal já estabelecido que não só convive com o natural desgaste da relação, mas ainda precisa lidar com questões como a obsessão pela inércia e perfeccionismo da moça e a vontade do rapaz em resgatar prazeres da juventude e deixar de ser tão dependente financeiramente. Ambos só combinam em uma coisa: lidam com os problemas com uma mentalidade juvenil, mas um tanto perversa. O desfecho controverso pode soar debochado e de mau gosto, mas dentro do contexto anárquico proposto funciona muito bem.
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