NOTA 9,0 Em tom de fábula, drama conta a história de um homem que viveu recluso em um navio e fez da música sua aliada e contato com o mundo exterior |
Embora quem o conhecesse o adorasse, ao se ver de certa
forma sozinho, Mil Novecentos decide que é hora de explorar novos horizontes e
passa a bisbilhotar o navio que então descobre ser um transatlântico luxuoso,
sendo o salão de festas o local que mais o fascina por conta da música, dança e
alegria. Em uma dessas escapadas ele encontra um piano e descobre que possui
uma habilidade natural para tocar o instrumento. Quando adulto, interpretado
pelo ator Tim Roth, o pianista já está famoso mesmo sem nunca ter saído do
navio e chama atenção de uma lenda do jazz, o pretensioso Jelly Roll Morton
(Clarence Williams III), que embarca numa viagem simplesmente para desafiá-lo
para um duelo. Todavia, não importa o quanto o desafiassem na parte musical o
músico nato sempre conseguia surpreender chegando até mesmo a tocar suas
melodias no meio de uma tempestade com o piano deslizando por todo o navio. Toda
essa curiosa história de uma vida em alto-mar, de paixão pela arte e de
valorização de ideais é narrada por um dos melhores amigos do pianista com que
chegou a dividir o palco em festas no transatlântico. Max Tooney (Pruitt Taylor
Vince) é um cantor de jazz falido que vai a uma loja de instrumentos e
artefatos musicais se desfazer de seu velho trompete, mas acaba relembrando seu
passado com Mil Novecentos buscando um disco que seu amigo supostamente teria
gravado dentro da embarcação. Este seria não só um registro histórico musical,
mas também a prova da existência de um homem que além do talento incontestável
com o piano também se tornaria uma lenda por sua curiosa história de vida já
que nunca colocou os pés em terra firma. Quando incentivado por seu amigo a
experimentar a vida longe das âncoras e lemes, o músico recua simplesmente
afirmando que não teve medo do que viu ao descer a rampa do navio, mas sim
receio do que seus olhos não podiam ver naquele momento. Isso revela o seu
contentamento com seu restrito universo. Se quando criança o pianista tinha
necessidade de conhecer novos ares para preencher vazios, ainda que em um
espaço físico limitado, já adulto a música o completava totalmente e de tal
forma que não via sentido em explorar o desconhecido. Seu velho barco era seu
porto seguro e fonte de inspiração. Experimentar o novo sem dúvidas seria seu
maior conflito interno.
Ainda que a grande mensagem do filme seja sublinhar que o
sentido da vida, a relação de um indivíduo com um determinado local ou pessoas
ou ainda a maneira de se observar o mundo sejam percepções que variam de acordo
com o ponto de vista e conhecimento intelectual e emocional de cada um,
Tornatore alivia o peso das dúvidas existenciais investindo no tom de fábula,
simbolismos e parábolas. Acostumado a lidar com personagens fictícios que
geralmente são ricos em sonhos, ao adaptar o monólogo dramático “Novecento” de
Alessandro Barico, o cineasta opta por literalmente embarcar em um conto
fantasioso, mas ainda assim imprimindo seu estilo de direção em cada fotograma.
Todavia, falar que um trabalho deste italiano é esplendido acaba sendo
redundante. Visual e tecnicamente suas obras nunca decepcionam. Fotografia,
iluminação, figurinos e principalmente a direção de arte que aqui ganha
importância maior devido a limitação de cenários, tudo é minuciosamente
inserido para ajudar a narrativa. O clima quase sempre nublado poderia ser observado
como uma metáfora ao estado de espírito do protagonista, pacato e sereno, mas
quando entra em cena a música é como se a obra ganhasse cores e injeção de
ânimo. As canções repletas de lirismo e poesia compostas pelo mestre Ennio
Morricone são maravilhosas e servem como um complemento essencial ao conjunto.
Não é a toa que venceu o Globo de Ouro na categoria de trilha sonora, mas não
deixa de ser triste pensar que essa linda obra ficou de fora de importantes
premiações, inclusive o Oscar. Injustiça principalmente com Tim Roth, aquele
tipo de ator que você sabe que já o viu em diversos filmes, quase sempre em
papéis pequenos, mas que agarrou com unhas e dentes a possibilidade de viver um
protagonista. Dono de um extenso e variado currículo, foi preciso um diretor
com olhar estrangeiro perceber o potencial deste intérprete. Sem dúvidas ele
colecionou cenas inesquecíveis com este trabalho, assim como o restante do
elenco. Quase como uma homenagem ao cinema à moda antiga, A Lenda do Pianista
do Mar transpira arte, poesia e humanidade, mas infelizmente nunca teve o
respeito que merecia por parte do mercado cinematográfico cada vez mais refém
de firulas tecnológicas que quase sempre só escamoteiam a falta de conteúdo.
Quantos cineastas de fama precisariam de um intensivão com a filmografia de
Tornatore...
Drama - 125 min - 1998
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