quinta-feira, 2 de setembro de 2021

NARC


Nota 8 Longa resgata com sucesso os principais elementos de um filme policial genuíno e crível


O gênero policial já teve sua fase de glória, mas com o tempo acabou sendo diluído à produções de suspense ou ação e assim perdeu suas principais características. A rigor, um filme do tipo deve convidar o espectador a brincar de detetive juntando peças até chegar a conclusão do crime em questão, sem necessariamente precisar de vertiginosas perseguições, tiroteios a cada cinco minutos e tampouco tramas intricadas apoiadas em um suposto final surpresa. É na simplicidade e objetividade que estão as grandes qualidades de Narc, obra independente que não conseguiu o devido valor quando lançada, mesmo sendo o período considerado a era de ouro para o cinema alternativo e de baixo orçamento. A sigla que dá título à fita é usada pela polícia norte-americana, uma abreviação para narcotráfico como são chamados os crimes envolvendo drogas e entorpecentes. Os policiais desta facção geralmente trabalham disfarçados e infiltrados entre as gangues que facilitam a venda de tais substâncias. Nick Tellis (Jason Patric) é um deles. O filme começa com uma impactante sequência na qual o detetive está caçando a pé um bandido. Em um ato impulsivo, ele atira no criminoso várias vezes e uma das balas acaba acertando uma mulher grávida, assim suas atitudes acabam sendo consideradas demasiadamente violentas e exageradas o que levou seus superiores a optarem por seu afastamento. 

Meses após o incidente, acompanhamos um pouco da melancólica rotina de Tellis em família. Sem trabalho, só lhe resta se dedicar aos afazeres domésticos e a ajudar a esposa com o filho de apenas dez meses, o que abala  seu emocional. Contudo, ele não é um sujeito violento como fora retratado, é apenas justo, leva a sério sua profissão e não mede esforços para combater a criminalidade. Quando lhe é oferecida uma oportunidade para voltar à corporação com promessas de que seus crimes seriam perdoados, a missão em um primeiro momento não lhe interessa. Tellis precisaria trabalhar junto com Henry Oak (Ray Liotta), policial que deseja descobrir quem matou seu parceiro de investigações Michael Calvess (Alan Van Sprang – visto em flashbacks principalmente na reta final), outro detetive que se infiltrava nas gangues, mas que em sua última missão acabou tendo seu disfarce descoberto e sendo morto. A experiência com o submundo das drogas do policial suspenso seria essencial para o caso, mas o problema é que Oak tem fama de não ser uma pessoa fácil de lidar e é adepto de quebrar qualquer regra para solucionar um problema. Depois de pensar um pouco, Tellis acaba aceitando a tarefa mesmo contrariando a esposa que preferia ver o marido desempregado que metido em situações perigosas. 


Os protagonistas representam personagens tradicionais do gênero, o durão e impulsivo somando forças a racionalidade e controle emocional do outro, mas pouco a pouco Tellis começa a se convencer que o objetivo do colega no caso não é exatamente o mesmo que o seu. A trama escrita e dirigida por Joe Carnahan não é original, tem alguns momentos desnecessários, mas no conjunto funciona bem.  Embora protagonizada por tipos manjados, as atuações de Patric e Liotta injetam ânimo envolvendo o espectador com tipos que tem um passado que justifica suas ações do presente, ainda que a forma de humanizar Tellis seja bem mais eficaz que o longo diálogo que ele trava com Oak para este provar que não é feito de pedra. Aliás, foi graças ao intérprete do policial durão que este filme começou a se tornar realidade. Em 1999, Liotta leu o roteiro, se interessou e correu atrás de patrocínio, mas as filmagens consumiram mais do que o previsto quando ainda não estavam nem na metade do cronograma, isso mesmo com o diretor e sua equipe trabalhando sem tirar qualquer lucro. Mais de quinze produtores no final das contas receberam crédito pela obra que foi lançada no Festival de Sundance, a grande vitrine do cinema independente, e que depois marcou ponto em vários eventos antes de finalmente chegar ao circuito comercial, ainda que timidamente. 

A história em si poderia receber alguns cortes, já que em alguns momentos a trama torna-se repetitiva com as suspeitas recaindo sobre vários personagens, mas os vinte minutos finais compensam qualquer enrolação com uma série de revelações que vão juntando as peças, tudo bem explicadinho, porém, sem subestimar a inteligência do espectador que deve ficar impaciente de forma positiva para saber o que pode acontecer até subirem os créditos finais. Fora isso, a parte técnica também merece destaque. A citada cena da introdução é tão perfeita que aparenta ter sido feita com um aparelho específico, mas na realidade o diretor amarrou uma câmera em um dublê para que ele captasse ininterruptamente todos os movimentos de Tellis, um efeito quase como o de um cinegrafista registrando a ação policial para um programa de TV. O incrível senso de realismo da sequência faz com que o espectador imediatamente se sinta fazendo parte da ação. Carnahan ainda capta outros bons momentos ao longo da narrativa apostando em ângulos e cortes de cena inusitados. Completando o visual, um tom por vezes acinzentado toma conta da produção, principalmente do ato final, retratando com realismo o clima de decadência das ruas tomadas pelo narcotráfico e a violência. 


Em Hollywood é comum que atores, diretores, roteiristas e produtores renomados recebam as vezes cópias de filmes de baixo orçamento ou até de grandes produções realizadas fora dos estúdios mais tradicionais para avaliarem no conforto de suas casas e quem sabe ajudar a lançar esses produtos. Tom Cruise assistiu o trabalho de Carnahan, aprovou o estilo narrativo cru e violento, e convenceu executivos da Paramount, empresa com a qual sempre manteve um bom relacionamento, a investir na distribuição do longa em solo americano que então conseguiu repercussão e bilheterias satisfatórias. No Brasil, a produção chegou com atraso e por intermédio de uma pequena empresa que o lançou diretamente para consumo doméstico e sem investimentos em publicidade, assim Narc virou uma pérola conhecida por poucos. Mesmo passado tantos anos, continua sendo um bom filme que merece ser revisto ou descoberto, ainda que não faça jus aos elogios rasgados que recebeu na época de estreia do diretor William Friedkin, vencedor do Oscar por Operação França, que o rotulou publicamente como o melhor policial de todos os tempos. 

Suspense - 105 min - 2002 

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