NOTA 7,0 Pequena e pacata cidade é usada para discutir importantes temas sociais ligados aos jovens, armas, medo e violência |
Embora não tenha um currículo
muito extenso o diretor Lars Von Trier se tornou uma grife cinematográfica, um
nome que pode não render milhões, mas que tem platéia cativa e o poder de
suscitar discussões, reflexões e expectativas. Thomas Vintenberg é um nome
menos conhecido, porém, ambos são profissionais que têm importância singular na
História do cinema. Eles foram alguns dos cineastas que levantaram a bandeira
do movimento Dogma 95, uma corrente que defendia a produção de filmes sem
grandes preocupações com a parte técnica, mas sim atenção focada na narrativa e
na criatividade, quase como produções caseiras com um tantinho mais de esmero.
O movimento não vingou, mas curiosamente seu conceito até hoje é perpetuado,
ainda que raramente seja colocado em prática. Todavia, após anos sem trabalhar
juntos, a dupla lançou Querida Wendy, obra que passa longe
dos ideais da manifestação que defendiam, porém, ainda bem distante da estética
de um filme comum. Equilibrando-se entre o alternativo e uma leve vontade de se
aproximar das massas, o diretor Vintenberg, recuperando-se então do retorno
negativo de Dogma do Amor, conseguiu
criar uma obra que não chega a ser excepcional, mas pode ter a honra de se
intitular como um trabalho único. É difícil encontrar algum outro produto similar
para fazer comparações, a começar pela abordagem do tema principal: a relação
do homem com as armas de fogo. No caso, a paixão de um rapaz por um revólver. Sim,
a tal Wendy do título não é uma mulher e sim a arma pela qual o Jovem Dick
(Jamie Bell) está apaixonado, inclusive o longa se sustenta com uma narrativa
em off como se fosse uma declaração de amor e despedida dele para o objeto que
muitos não gostariam de ter em casa nem em forma de brinquedo. Bem, não se
podia esperar algo convencional de um roteiro de Von Trier. O tímido rapaz vive
em Estherslope, uma pequena e pacata cidade no interior dos EUA, não se encaixa
no estilo de vida do local e tampouco tem perspectivas de vida, mas tudo muda
quando certo dia acaba comprando uma arma de brinquedo em uma loja a beira da
falência para presentear um garoto que ao que tudo indica não lhe despertava os
melhores dos sentimentos. Na última hora ele decide dar outra coisa de presente
e quando vai devolver o revólver descobre que ele é de verdade. Fascinado por
sua nova companheira, ele lhe dá um nome, a leva junto para onde quer que vá e
passa a demonstrar autoconfiança, uma sensação que até então desconhecia. Todavia,
ele se diz um pacifista nato.
Dick estaria condenado a
trabalhar como minerador assim como seu pai, a profissão mais valorizada da
cidade, mas ele prefere continuar como uma figura apagadinha, embora sonhe que
um dia conseguiria realizar algo de extraordinário para a humanidade. Enquanto
esse dia não chega, ele se contenta em trabalhar em um mercado, ainda mais com
o incentivo de aprofundar sua amizade com Stevie (Mark Webber), outro empregado
da loja, também pacifista, mas que sabe tudo sobre armamentos. Depois de algum
tempo eles acabam se reunindo a outros jovens que se sentem excluídos em
Estherslope, Huey (Chris Owen), Freddie (Michael Angarano), Susan (Alison Pill)
e Sebastian (Danso Gordon). Em comum todos eles têm a falta de perspectiva de
melhorarem de vida, mas juntos parecem nutrir o desejo de se tornarem pessoas melhores
pelo simples fato de não se sentirem sozinhos no mundo. Assim eles formam uma
espécie de sociedade secreta chamada Dandi, um clube onde praticam tiro ao alvo
e se dedicam ao estudo da evolução das armas e da violência, porém, sempre
guiados por leis pacifistas, sendo o principal lema nunca sacar uma arma em
público, muito menos atirar. Porém, o mundinho a parte em que se fecharam não
demora a ser posto a prova por diversos acontecimentos, inclusive a
interferência da polícia local representada pelo agente Krugsby (Bill Pullman).
É previsível o que acontecerá. O velho ditado diz quem brinca com fogo acaba
queimado. Com armas o destino também é cruel, mas apesar dos violentos minutos
finais, diga-se de passagem, muito bem fotografados e editados, eles expressam
um senso de realidade intenso, levam uma crítica reflexiva sem precisar de
discursos piegas, as imagens já dizem tudo, e injetam uma adrenalina benéfica
que se contrapõe a lentidão onipresente no restante da narrativa. A trama pode
soar a primeira vista um tanto irreal, mas tem louco para tudo e os grupos de
amizades acabam sendo formados justamente por elementos em comuns entre as
pessoas, não raramente preferências que podem ser um tanto bizarras. O elenco
jovem encara com seriedade a temática e é ele que faz com que o espectador se
envolva na trama, tenha interesse de ver até onde o fascínio pelas armas
chegará, já provavelmente na expectativa de que em determinado momento tal
hobbie acarretaria consequências sérias. Quem está assistindo dificilmente fica
passivo ao longo da narrativa, pois ela tem o dom de colocar as pessoas
instantaneamente a refletirem. Embora a primeira vista a tendência seja
criticar os dandies, ao poucos nos envolvemos com suas histórias, com a magia
de se enxergar uma arma como se fosse uma pessoa de verdade e até
compartilhamos de certa forma suas convicções. O micro universo em que a trama
é desenvolvida não foi uma escolha a toa. Primeiro, serve para mostrar de uma
forma mais intimista o impacto que o medo da violência gera em qualquer centro
populacional, seja ele uma grande metrópole ou um vilarejo rural. Mesmo conhecendo a reduzida população, os
habitantes não se sentem seguros. É como se essa sensação fosse
inconscientemente uma necessidade do ser humano para conseguir viver. Segundo
motivo é para mostrar como a insatisfação das pessoas também se tornou algo
pertinente ao cotidiano. Costumamos dizer que nos sentimos um peixe fora d’água
em situações que nos exponham a grandes aglomerações, mas mesmo em uma cidade com
uma população reduzida a sensação de ser um excluído pode existir, ainda mais
quando tal lugar é tradicionalista e o diferente é visto como ameaça ou
anormalidade.
O pequeno vilarejo ainda tem o
sentido de criticar ou até mesmo parodiar o próprio cinema, visto que
Estherslope, uma cidade que parou no tempo, nos remete as locações típicas de
filmes de faroeste, o grande símbolo do cinema americano no qual os
protagonistas eram valentes e destemidos. No caso, as estrelas do show cultivam
um perfil completamente oposto e preferem se manter reclusos em um mundo
particular, permitindo até uma reflexão psicológica. Da mesma forma que uma
pessoa se sente revitalizada quando está bem arrumada e perfumada pronta para
encarar os olhares e as más línguas de uma sociedade hipócrita, os dandies
munidos de revólveres ganham segurança, sentem que são alguém de verdade, mas
sem perceberem estão idolatrando justamente o motivo que os levarão a
degradação. Quem consegue captar essa essência do grupo de jovens, o sentimento
de inferioridade sendo suplantado por um repentino prazer que injeta ânimo às
suas vidas, certamente aproveitará melhor o conteúdo de Querida Wendy, um drama
muito diferente e que não agrada a grandes platéias, mas não é difícil
encontrar quem se identifique com o conflito principal afinal quantas pessoas
não entram diariamente em uma espiral de degradação a fim de se sentirem
respeitadas acreditando que uma mudança no figurino ou uma tatuagem podem
ajudá-las a serem aceitas em algum grupo social. Claro que são casos que não
chegam a problemas extremos como no longa, mas a anulação da essência humana
pode ser tão prejudicial quando um ferimento feito por uma bala perdida. Por
fim, é óbvio que existe a crítica implícita (ou seria explícita?) a onda de
violência que não serve apenas para cutucar os americanos, mas sim os povos de
qualquer parte do mundo. Através dos olhares juvenis, desencantados com a
situação do mundo, temos uma visão diferenciada do porte de armas. São objetos
inanimados que só ganham vida quando acionados. O problema é que se perdeu a
noção do limite e qualquer comentário mal interpretado pode ser o estopim de
uma tragédia. Todavia, reflexões mais complexas sobre violência, medo, guerras
e afins acabam ficando por conta do espectador ao subirem os créditos finais.
Como já dito, Von Trier e Vintenberg parecem mais preocupados em transmitir a
dificuldade dos dandies em se conectar com o universo em que vivem e é dessa
insatisfação que podem surgir os indivíduos violentos do amanhã. De qualquer forma,
a proposta do filme não é recomendada justamente para o público adolescente,
pelo menos não para boa parte dos representantes dessa faixa etária. A mensagem
pode ser interpretada de forma errada por imaturos. Exagero? Então porque vira
e mexe ouvimos alguém dizer que um carro dirigido por um jovem é como uma arma
letal? Pense e faça as associações entre o filme e a realidade. Tal qual Dick e
seus amigos se sentem poderosos munidos de revólveres, o mesmo acontece com a
posse de um veículo. São como escudos que ingenuamente passam a sensação de
poder e proteção. Discussões complexas que felizmente um bom filme pode
suscitar, mas que podem passar batidas em tempos em que a mediocridade
intelectual impera e interpretações além da imagem parecem obsoletas. No final
das contas, não duvide que exista quem veja este filme como um faroeste mal
feito e sem nexo.
Drama - 101 min - 2004
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