NOTA 7,0 Robert Altman documenta a preparação de um espetáculo de dança com olhar distanciado |
Anos antes de uma obra em
preto-e-branco, francesa e muda ganhar o Oscar de Melhor Filme em pleno século
21 e bem antes também do público mais elitizado se interessar em assistir
óperas em sessões especiais em cinemas de shopping que pareciam fadados a
sobreviver da demanda em busca de produções com efeitos especiais de última
geração, já tinham cineastas interessados em inovar e lançar produtos pouco
convencionais. Alguns construíram suas carreiras em cima de projetos
alternativos, seja para sacudir o mercado ou puramente para satisfazerem
desejos pessoais, mas em ambos os casos a certeza é uma só: prestígio pode ser
atrelado à ousadia, mas fortuna é algo bem distante. O cultuado e saudoso
Robert Altman já tinha uma carreira consolidada quando resolveu se arriscar a
dirigir De Corpo e Alma, uma obra muito difícil de classificar em
gênero específico. A bailarina Ry (Neve Campbell) está vivendo intensamente a
rotina de ensaios de balé para um grande espetáculo que a companhia de dança a
qual pertence está organizando. O ambiente deveria exalar alegria já que o
evento é muito aguardado por todos os alunos, mas na realidade o clima é uma mistura
de melancolia e ansiedade, isso porque a disputa pelos papéis nas diversas
sequências de dança, em geral contemporâneas, está muito acirrada. Os
professores exigem o máximo de dedicação dos candidatos e o mínimo deslize pode
significar sua ausência no espetáculo ou o mesmo ser relegado a uma
participação sem destaque. Todos são observados com muita atenção pelo diretor
e líder da companhia, Alberto Antonelli (Malcolm MacDowell), mais conhecido
como Sr. A. Querendo muito agradá-lo e ter um grande destaque no espetáculo, Ry
se esforça o máximo que pode, mas durante o processo de seleção ela se apaixona
por Josh (James Franco), uma distração que pode atrapalhá-la neste momento que
pode ser crucial em sua profissão. Pensando no dilema que a protagonista vive,
a vida profissional ser mais importante que a pessoal, pode parecer que estamos
diante de um pré Cisne Negro. Até que
podem ser feitas comparações entre as duas obras, mas certamente a de Altman
parecerá bem mais modesta, porém, esta afirmação não deve ser encarada como
algo depreciativo. Simplicidade e realismo eram justamente os objetivos do
diretor que se cercou de bailarinos de verdade e utilizou sua câmera de forma
livre e onipresente para seguir os passos dos dançarinos durante os ensaios e
também acompanhar um pouco de suas vidas íntimas, mas as histórias dessas
pessoas não chegam a ser desenvolvidas de forma satisfatória. Até os atores
mais conhecidos aparecem despercebidos praticamente, quase como figurantes, já
que Neve e Franco vivem um relacionamento frio que não consegue envolver o
espectador.
Nos últimos anos foi possível verificar um
aumento da oferta de filmes que tem como panos de fundos espetáculos e aulas de
dança. Depois de sucessos como Dança
Comigo? e Vem Dançar, ambos com
elenco chamativos, e dos artistas nacionais e internacionais popularizarem os
concursos de dança na TV, o público entrou na onda e também começou a se
matricular em cursos para aprender os mais diversos ritmos. Mas será que em
meio a salsas, valsas, hip hop, entre outros estilos musicais, existe espaço no
cinema para o balé, seja ele clássico ou contemporâneo? A resposta talvez seja
não de acordo com a forma que o público e até mesmo a crítica trataram este
filme quando lançado e até hoje já que ele é praticamente desconhecido. De
qualquer forma, o que chama a atenção neste projeto é
a reverência à dança, lembrando, é claro, que este é um produto para apreciação
por um público seleto ou amante de artes e cultura, isso se derem sorte de
achá-lo em alguma loja ou locadora. É triste ver que um cineasta tantas vezes
indicado a prêmios tenha chegado ao fim de sua vida e carreira sofrendo
rejeição, embora na época em que dirigiu esta mistura de ficção e documentário
ele já demonstrava sinais de desgaste físico, o que certamente atrapalha o
trabalho, mas longe de estar fatigado mentalmente. É difícil explicar em
palavras a sensação de assistir a este trabalho atípico em seu currículo.
Aparentemente pode parecer um projeto de filmagem caseira, mas o roteiro de
Barbara Turner consegue envolver (ou enganar) os espectadores de forma que
sempre ficamos na expectativa de que algo grandioso está para acontecer na
próxima cena, mas na realidade precisamos esperar até quase o final quando
finalmente vemos o espetáculo “A Cobra Azul” montado. É nessa parte que
agradecemos por termos tido paciência de aguentar o imbróglio que o filme se
revelou praticamente em toda a sua extensão. A produção ganha belas cores, som
estridente e uma iluminação de primeira que contrasta com o clima melancólico e
ligeiramente tenso que ocupava a tela retratando um ambiente sem glamour e
competitivo. É até um recurso de meta-linguagem. Ao mesmo tempo em que a
ambientação de praticamente todo o longa é fria, silenciosa e com emoções
praticamente nulas, o filme em si também reflete essas sensações, tornando-se
bem mais interessante e envolvente não por acaso em seu clímax.
Altman se envolveu com este projeto quando
o mesmo já estava sendo encaminhado pela própria protagonista que também
co-produziu e co-escreveu o longa. Neve antes de ser atriz já se dedicava a
carreira de bailarina e ansiava pela oportunidade de mostrar essa sua outra
vocação (talvez a sua real) no cinema. A idéia de um filme que mistura aulas de
danças, ensaios, bastidores e, por fim, a apresentação final, desde sua
concepção já denunciava uma obra com caráter artístico e experimental e sem
visões lucrativas. Certamente isso influenciou o cineasta a aceitar tocar o
projeto e imprimir suas características de trabalho, como as sequências de
contemplação e muitas pessoas em cena. Ele optou em apresentar as imagens dos
ensaios de forma quase caseira e com diálogos que parecem ter sido captados por
câmeras ocultas, reforçando o estilo making of e mantendo o olhar distanciado
entre diretor e obra, assim tudo parece muito natural e sem manipulações. Dessa
forma ele consegue revelar o clima ora perturbador
ora agradável dos bastidores de um espetáculo que tem que resultar encantador
para as platéias e é exatamente essas as sensações que o espectador do filme
tem. O sentimento incômodo que nos persegue até pouco mais da metade de
projeção é substituído por deslumbramento quando os bailarinos estão dando o
seu melhor no palco. De Corpo e Alma, em resumo, é uma
ótima opção para platéias que tenham sensibilidade suficiente para ver beleza e
sentido nas pequenas coisas e momentos da vida que neste caso traz como real
protagonista do espetáculo a dança. Os aplausos que acompanham os
créditos finais servem para reverenciar este trabalho no mínimo audacioso e
curioso na filmografia de Altman, um nome que faz falta no mundo
cinematográfico.
Drama - 112 min - 2003 - Dê sua opinião abaixo.
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