Existem diretores que depois de aclamados por algum trabalho nunca mais conseguem surpreender, muitas vezes até por comodismo. Já outros não se preocupam em lançar filmes a ritmo industrial, assim debruçam-se sobre projetos que podem lhe custar anos de empenho, mas buscam ao menos manter o nível das produções que os consagraram. Se o resultado for melhor ainda é só lucro e a certeza de que terão desafios ainda maiores pela frente. Fernando Meirelles é um dos cineastas desse estilo. Depois de marcar presença em diversas premiações com O Jardineiro Fiel e Cidade de Deus, por este indicado ao Oscar de Melhor Diretor, ele certamente deve ter recebido inúmeras propostas de trabalhos nacionais e internacionais, mas concentrou-se por alguns anos sobre um roteiro considerado por muitos impossível de ser filmado. Ensaio Sobre a Cegueira é baseado no livro homônimo do português José Saramago, uma obra que mostra o que há de pior nos seres humanos quando podem agir sem serem vistos e principalmente guiados pelo instinto de sobrevivência. Meirelles consegue captar fidedignamente a essência da publicação realizando um filme que trata de temas polêmicos de forma seca sem se preocupar em atenuar as situações para transformá-lo em algo mais agradável de se ver. Quem topar assistir que encare a dura realidade apresentada.
A trama
aborda um grupo de pessoas atingido por uma inexplicável epidemia de cegueira,
na verdade um estado que os fazia enxergar apenas um completo vazio tingido de
branco. Com medo do contágio se espalhar, o governo decide isolá-los em um
manicômio desativado onde eles precisam se acostumar a obedecer novas regras e
hierarquias. Enquanto uns com espírito de solidariedade propõem a igualdade de
direitos e deveres, outros acreditam que podem mandar naquele lugar impondo
suas vontades através de autoritarismo e humilhações. Trabalhando com estrelas
de Hollywood e atores de diferentes nacionalidades para representar que a
epidemia poderia ser global, os personagens não tem nomes. Temos um médico
oftalmologista (Mark Ruffalo) que sente a cegueira pouco tempo depois de
examinar um jovem (Yusuke Iseya) que é o primeiro a ser diagnosticado com o
distúrbio. Em seguida a esposa do rapaz (Yoshino Kimura) também deixa de
enxergar. O problema também atinge uma prostituta (Alice Braga), um latino
(Gael Garcia Bernal), um senhor de idade (Danny Glover) e até um garotinho
(Mitchell Nye). Entre eles, alguns outros personagens com falas e outros apenas
para figuração como forma de mostrar que a tal cegueira poderia ser de fácil
disseminação. No grupo confinado existe apenas uma pessoa que inexplicavelmente
está enxergando, a esposa do oftalmologista (Julianne Moore), esta que então
assume a posição de guia para o grupo omitindo para a maioria que não foi
acometida pelo fenômeno. Cabe a essa personagem a importante tarefa de criar um
elo entre o espectador e a narrativa repleta de simbolismos, referências e
reflexões.
Diante
de uma situação tão complexa e adversa a mulher com o dom visão é capaz, por
exemplo, de perdoar uma traição do marido flagrada durante o confinamento, um
pormenor frente ao desafio que estavam vivendo. Ela se torna testemunha ocular
da degradação humana num grupo em que os homens tem a necessidade de se impor
para não se sentirem anulados ao passo que as mulheres demonstram suportar com
mais coragem as dores e privações. A reflexão proposta é que o ser humano
quando desprovido de sua rotina e facilidades do mundo moderno retorna a
condição praticamente de homem das cavernas em busca de saciar suas
necessidades básicas como se alimentar e ter prazer sexual. Vivendo
praticamente numa realidade paralela, alguns confinados tentam impor um regime
ditatorial dentro do confinamento fazendo uso da violência para explorar e
humilhar os mais fracos, principalmente as mulheres que são estupradas
compulsoriamente e tratadas feito animais destinados ao abate. Quando
finalmente criam coragem para encarar o mundo fora daquele ambiente, o grupo
percebe que a cegueira se espalhou por toda a sociedade e que serão obrigados a
se acostumarem com uma nova realidade. Com todos desprovidos de visão como
ficariam os empregos e a economia? O medo do futuro então faz com que os
humanos se comportem como animais caçando para sobreviver, assim se
atracam dentro de um supermercado para poderem pegar o máximo possível de
suprimentos, uma situação aterradora para a mulher que consegue ver tudo e
pouco pode fazer a não ser tentar proteger ao menos o grupo mais chegado a ela
no confinamento.
A escuridão do manicômio é trocada pela excessiva claridade do ambiente exterior, mas embora uma tonalidade branca resplandeça na tela, a cidade retratada está negra. Uma metrópole não identificada está entregue a própria sorte, completamente suja e movimentada pelo vai e vem desorientado da população completamente cega. Se você achar tudo que é apresentado no longa assustador, então passe longe do livro onde a realidade é ainda mais sórdida e desesperançosa. Saramago havia vetado inúmeras propostas de adaptação alegando que o cinema destrói o poder da imaginação. De certa forma ele não deixa de ter razão. Quaisquer obras literárias transportadas para as telas acabam transformando em realidade as imagens que até então cada um poderia criar à sua maneira e o problema é que a maioria das vezes o que é idealizado por um diretor não condiz com o que o espectador esperava. Apaixonado pelo trabalho do autor português, Meirelles acalentou o desejo da adaptação do romance por mais de uma década e não desistiu mesmo após ele ter sido um dos que receberam o veto. Após muita insistência, ele conseguiu os direitos e soube respeitar e homenagear a obra compreendendo e recriando sua essência tirando proveito de sequências que já eram o suficientemente dramáticas, assim o filme tenta ser o mais fiel possível ao livro, tanto que o próprio Saramago aprovou o resultado. De acréscimo, o cineasta apenas recriou em imagens em movimento a tela "A Parábola dos Cegos", do pintor Peter Paul Brueghel, na cena em que os enfermos saem do isolamento em fila única, um a um apoiando-se em quem estava à sua frente, e guiados pela única pessoa do grupo a enxergar, uma forma de mostrar que ainda haveria esperança e solidariedade mesmo quando tudo parecia perdido.
O roteiro adaptado por Don Mckellar, que também faz o papel de um ladrão, é bem-sucedido ao manter os principais elementos da história original, sem apelar para sentimentalismos a fim de deixar Ensaio Sobre a Cegueira com mais apelo comercial. Além da trama pesada, talvez o principal impasse para que muitos considerassem o livro algo impossível de ser levado aos cinemas era a questão de como representar em imagens a cegueira. É aí que entra a fotografia de César Charlone e a edição de Daniel Rezende como elementos essenciais para a narrativa. Geralmente nomes da equipe técnica passam despercebidos, mas estes profissionais tornaram-se tão importantes na indústria quanto Meirelles. Os dois também foram indicados ao Oscar por Cidade de Deus e passaram a se dividir entre o cinema nacional e o internacional. Charlone criou a concepção de uma imagem leitosa para ilustrar a tal cegueira branca e a edição de Rezende passa com perfeição a sensação de inquietude dos enfermos. É impossível assistir passível a esta produção que no passado era pura ficção e em 2020 ameaçou se tornar quase que totalmente real dentro da realidade que vivemos com a pandemia do corona vírus. Passamos pelo isolamento, pelo medo da contaminação descontrolada e a cegueira ficou por conta daqueles que minimizaram ou ignoraram o problema. Mais uma vez, a vida imita a arte ou a arte imita a vida?
Um comentário:
esse filme é 1 00000000000000
um drama suspense como poucos, me apaixonei tanto, que li o original do livro, e ainda fiz trabalho escolar sobre o assunto. Julianne Moore, é o destaque, como sempre linda, e competente, vale assistir e re-assistir...
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