Nota 8 Visualmente perfeito, adaptação de clássico só perde pontos por não inovar no enredo
A maioria dos contos de fadas são histórias clássicas criadas no período da Idade Média e o tal felizes para sempre não constam nos originais. Há registros de que a maioria de tais histórias acabam de formas bastante trágicas, porém, as gerações formadas a partir do início do século 20 se acostumaram a comprar as versões dos estúdios Disney como as verídicas e assim um vasto leque de produtos culturais e de bens de consumo derivados dessas animações fizeram a roda do dinheiro girar e muito. Peças de teatro, quadrinhos, livrinhos de colorir, adaptações para a TV, brinquedos, bonecos, materiais escolares, roupas e até produtos alimentícios e de higiene tratam ainda de levar adiante as versões adocicadas da casa do Mickey Mouse para os contos, além das próprias animações replicadas em mídias físicas, televisão e serviços de streaming. Aproveitando-se de todo esse portfólio, muitas produtoras de cinema se arriscam a fazer suas versões destas histórias ou até mesmo reinventá-las carregando no humor, tensão ou divagando sobre o que teria acontecido aos personagens caso tivessem tomados decisões diferentes em suas vidas. De olho nessa movimentação dos concorrentes, a Disney não ficou parada e também tentou fazer adaptações diferentes de alguns de seus desenhos consagrados como Cinderela. Mantendo o lado lúdico intacto, tal versão ao mesmo tempo que homenageia a animação procura resgatar um romantismo e inocência que cada vez mais perde espaço no universo infantil e até mesmo dos adultos.
Antes o estúdio já havia trabalhado com as releituras de Alice no País das Maravilhas, acentuando o clima psicodélico já intrínseco no conto original, e Malévola, recontando a história da Bela Adormecida pela ótica da vilã. Ambas adaptações com atores em carne e osso e carregada de efeitos especiais, o público correspondeu as expectativas com polpudas bilheterias, mas visualmente os exageros incomodaram se assemelhando mais a produções adaptadas de quadrinhos de heróis ou videogames que propriamente às famosas obras animadas com traços delicados e cores aquareladas. Com a versão live-action da Gata Borralheira parece que o estúdio finalmente encontrou a fórmula mágica do sucesso: simplesmente recontar a mesma história da versão em desenho animado. Na contramão das histórias de princesas que não são mais tão indefesas e o sonho de conseguirem um amor para toda a vida ficou em segundo plano, o roteirista Chris Weitz preferiu não inovar e criou uma protagonista tão bela, gentil e recatada quanto a do desenho que em 1950 salvou a Disney da falência. Ella (Lily James) é a filha de um caixeiro viajante (Ben Chaplin) que após muitos anos da morte da esposa decide se casar com a também viúva Lady Tremaine (Cate Blanchett) na esperança de juntos compartilharem algum conforto e felicidade agora que estão envelhecendo. Trazendo a tiracolo suas filhas Drisella (Sophie McShera) e Anastasia (Holliday Grainger), no início a união destas famílias poderia não exalar total harmonia, mas havia certa dose de respeito e cordialidade, contudo, quando o patriarca vem a falecer em uma de suas viagens a situação muda completamente.
Acostumada a realizar muitas e até difíceis tarefas domésticas para agradar a madrasta e as meias-irmãs, Ella passa em definitivo a ser tratada como uma empregada e a sofrer diversas humilhações, mas justificam seu calvário como uma forma da garota ocupar seu tempo e não ficar pensando nos pais. Cinderela, como passou a ser chamada, suporta todos os maus tratos sem reclamações. Certo dia, por um acaso, a sorte lhe sorri e na floresta ela vem a conhecer o príncipe Kit (Richard Madden) que farto de ser bajulado por pessoas a fim de algum benefício fica encantado com a inocência da jovem que não faz a menor ideia de quem ele seja, assim aproveita e se apresenta apenas como um cavaleiro da corte. Contudo, uma festa já está sendo preparada para o rapaz conhecer alguma donzela que julgue perfeita para ser sua esposa, a oportunidade perfeita para reencontrar Cinderela, todavia, o primeiro encontro acabou com diversos mal-entendidos e ele não sabe nem mesmo onde ela vive. Todas as mulheres do reino foram convidadas, mas Tremaine proíbe que a enteada vá ciente dos atributos da garota, o que certamente atrapalharia seus planos de que uma de suas filhas venha a se tornar rainha. E eis que na noite do baile Cinderela recebe a visita de sua amável Fada-Madrinha (Helena Bonham Carter) que transforma animais em chofer, uma abobora em uma imponente carruagem, os trapos da menina em um luxuoso vestido e a presenteia com sapatinhos de cristal, porém, toda essa magia acabaria a meia-noite. E não é surpresa para ninguém que ela e o príncipe se reencontrarão, ao soar do relógio na fuga perderá um dos calçados e que o rapaz passará a procurá-la de casa em casa até achar a moça que conseguirá calçá-lo e então desposá-la.
Fora uma presença maior do príncipe no enredo, algo certamente inspirado por Para Sempre Cinderela que já apresentava uma versão do conto da borralheira mais realista, o estúdio não pensou em reinventar a personagem ou seu universo, apenas conta a mesma história do cultuado desenho também presente nos livros mais tradicionais. Weitz apenas faz alguns ajustes para torná-la mais humana e crível, mas sem perder o encanto e a delicadeza. Os animaizinhos amiguinhos da protagonista não foram dispensados, porém, não falam, apenas são uma companhia natural ao cotidiano da borralheira, mas com certa dose de sentimentalismo. Os efeitos especiais felizmente são usados com parcimônia, acionados no clímax de Cinderela. A transformação do vestido e da carroça encantam com uma explosão de magia aguardada com ansiedade, da mesma forma que seu retorno às formas originais. Muito bom ver que ainda há quem consiga realizar um filme voltado às crianças, mas de fato contando uma história e não sendo refém da computação gráfica que em produções do tipo tentam a todo custo suplantar a narrativa. Kenneth Branagh, ator e diretor, está no comando de tudo e a ambientação clássica, romântica e porque não dizer até um pouco dramática o inspira visto que é um amante de adaptações de obras shakespearianas ou afins. Ao assumir a transposição da animação para o live-action da versão mais famosa do conto da borralheira datado do século 17, o cineasta foi muito feliz oferecendo uma obra carismática na medida certa ao imaginário infantil e ao mesmo tempo com um bom nível de maturidade para envolver os adultos.
O elenco está em estado de graça e as atuações redimensionam os perfis pré-estabelecidos pela animação . A delicadeza da imagem da bela James equilibra bem inocência e coragem para suportar as agruras que a órfã passa. É no antagonismo entre Cinderela e Tremaine que o longa se sustenta. A submissão da jovem está no mesmo nível de crueldade exalado pela vilã defendida com maestria por Blanchett cuja primeira aparição é cercada de mistério. Um enorme e luxuoso chapéu esconde o rosto da madrasta até que entre pela primeira vez na casa do novo marido, revelando suas feições de decepção ao perceber que seu padrão de vida será rebaixado consideravelmente. Altiva, culta e elegante, com o passar dos anos cada vez mais perdeu dinheiro, o que a fez dispensar todos os empregados e encarregar a enteada de suas tarefas. O ressentimento dela também se justifica pela frustração de suas filhas não terem herdado seu jeito de ser. Arrogantes elas são, mas as irmãs que já são dotadas de humor involuntário por conta de seus exageros naturais ganham ainda mais comicidade com seus figurinos extravagantes e multicoloridos. Aliás, a beleza e detalhes das roupas eclipsam os olhos. A vestimenta faz toda a diferença para Carter construir uma fadinha que pouco nos lembra a imagem da idosa e boa feiticeira do desenho. Além do humor acentuado por gestos e expressões aloprados, é ela quem assume a função de narradora do conto.
Romance - 105 min - 2015
Um comentário:
Um dos meus filmes preferidos 💙
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