Nota 7 Com temática polêmica, longa poderia explorar melhor o universo e perfis dos personagens
Sabemos que as vivências de uma pessoa durante a infância e a adolescência podem ditar os caminhos de seu futuro, mas mesmo depois de adultas os acontecimentos influenciam decisivamente em suas trajetórias. Um passado traumatizado pode ser revertido graças a um amadurecimento saudável, mas um histórico de vida positivo também pode ser destruído com maus passos no futuro. A protagonista de Distúrbios do Prazer, para sua infelicidade, carrega traumas da infância e também não tem tido sorte em sua vida adulta. Nancy (Maria Bello) era constantemente abusada pelo tio, mas pior que ter sua vida sexual iniciada precocemente é que ela também foi incentivada a gostar do masoquismo, dessa forma acabou viciada em sexo e violência. Mesmo assim ela conseguiu se casar com um sujeito aparentemente normal e é justamente esse detalhe que coloca a relação no fio da navalha literalmente. Albert Stockwell (Rufus Sewell), seu marido, é um executivo insensível que pouco dá atenção à mulher. Em flashbacks, a narrativa mostra um pouco da rotina do casal. Nancy até tentava levar uma vida descontraída e normal, mas o companheiro sempre sisudo cortava totalmente o clima, ainda mais quando ela procurava instigar o lado perverso do rapaz, mas só conseguia se frustrar ainda mais com suas reações. Ela então buscava prazer na dor e constantemente se automutilava, uma rotina doentia que já durava anos até que decidiu tomar uma decisão radical e abandonar o marido, mas não sem ter um plano traçado para seu próprio bem estar e vingança.
Há algum tempo ela vinha se comunicando pela internet com Louis Farley (Jason Patric), outro pervertido que a convence a abandonar sua vida sem graça e a embarcar com ele para uma viagem onde a dor e o prazer caminhariam paralelamente e sem limites. Para Stockwell, ela simplesmente deixa uma mensagem por escrito avisando que estaria passando uns dias com uns amigos, algo no mínimo estranho para um marido admitir, mas por aí já temos uma ideia de como andava a relação do casal. Ele nem mesmo percebia as marcas de cortes com giletes que ela fazia nos braços e pernas, porém, se recorda de ter visto a mulher dias antes com um comportamento estranho quando usava o computador. Enquanto o marido aguarda passivamente ao menos notícias, a esposa vivencia seu bizarro sonho. Em sua mente perturbada, demonstrações de amor estavam intimamente ligadas à coragem do parceiro em agredir e nesse quesito o amante não a decepciona. Logo nas primeiras carícias, Farley não hesita em introduzir nela um cigarro aceso por trás e pouco depois lhe torturar com fisgadas de ratoeiras nos pés. A perversão é tamanha que o acordo entre eles também prevê torturar levemente Albert. O amante vai até a residência do casal fingindo ser um técnico de informática requisitado por Nancy, mas a visita vem a calhar já que Albert gostaria de ter acesso aos emails da esposa. É então que ele percebe por algumas evidências que o tal prestador de serviços é o cara com quem sua mulher conversava e o mantém refém até que ele revele onde ela está, mas Farley não parece incomodado e até afronta o rival afirmando que simplesmente estava dando a Nancy aquilo que o marido jamais lhe ofereceu: a liberdade para viver como bem entendesse, mesmo que através de meios torpes.
Quanto mais agressões e xingamentos mais ainda o pervertido rapaz se diverte acompanhando Albert saindo do sério. Contudo, a vontade de Nancy não é apenas ver o ex-companheiro sofrendo na pele ao menos um pouquinho da solidão e rejeição que ela sentiu por anos, assim nem mesmo a assinatura definitiva de um divórcio aplacaria sua dor. Seu estado doentio é muito mais profundo. Embora procure a todo o momento justificar sua tristeza colocando a culpa em um casamento fracassado, seu emocional já vinha sendo abalado desde a infância, ainda por ter sido rejeitada pela mãe. Na ausência do tio pedófilo e masoquista, uma companhia adepta de joguinhos perversos e sem limites poderia ser a solução, mas ela está decidida a experimentar o máximo do sofrimento. A fuga com Farley teria um objetivo bem mais mórbido e eles teriam combinado previamente que após alguns dias de diversão a um modo bem particular o amante a mataria durante o ato sexual. Com direito a vestido de festa para a ocasião, ela ainda faz questão de estar presente em uma loja de ferragens e afins durante a compra dos apetrechos necessários para a grande noite em que seria conscientemente assassinada. No entanto, o carrasco que escolheu é um pouco mais ajuizado e compreende que há uma grande diferença entre fantasiar o prazer de matar e consumar o ato, assim ele se redime e procura ajuda de Albert acreditando ser o único capaz de impedi-la.
Este filme tem o mérito de trazer a tona um assunto pouco difundido e polêmico, uma ousadia e tanto para marcar o trabalho de estreia na direção do sueco Johan Renck, oriundo do mundo dos videoclipes. A temática desagradável realmente só deve interessar a nichos específicos de público, mas isso não significa que somente estudantes e profissionais ligados à área de psicologia e afins possam participar dessa angustiante narrativa. Às vezes vencer a curiosidade é difícil, mas é bom frisar aos aventureiros que nem mesmo uma mensagem de redenção restará ao final, ou melhor, ela se faz presente, mas diante de tudo o que acompanhamos antes a lição acaba sendo diluída em meio a lembranças escabrosas. Os personagens principais disputam palmo a palmo o prêmio de perfil mais repugnante da História do cinema, não se salvando nem mesmo o marido traído que também tem um jeito muito particular de tocar a vida. O roteiro de Pamela Cumming e Lee H. Ross resume-se a uma sucessão de eventos que buscam mostrar o quão degradante pode ser o cotidiano de um ser humano infeliz. Pior ainda, mostra o quanto sua insatisfação pode modificar a vida de outros.
Inspirado em fatos reais, o encontro de masoquistas proporcionado pela comunicação virtual é perfeitamente aceitável, mas é certo que chegar ao ponto de firmar um pacto de morte deixa a trama a certa altura um pouco incrédula. Diz o ditado que há louco para tudo, mas seria um tanto forçado acreditar que alguém poderia aceitar matar sem pensar nas consequências. Distúrbios do Prazer procura contornar a situação buscando algum resquício de normalidade em Farley, mas o fato é que no final das contas sentimos que o trio de protagonistas é retratado de forma estereotipada devido ao mínimo que nos é fornecido sobre seus universos. Faltam razões para justificar as ações no presente dos personagens masculinos. Nancy é de longe o perfil mais bem desenvolvido e algumas passagens que mostram suas visitas a sessões de terapia ajudam a acentuar a percepção de seu desânimo com a vida e a sensação de bem-estar que a dor lhe proporciona. No geral, apesar do clima melancólico e frio que assola a produção do início ao fim, o longa consegue cumprir razoavelmente seus objetivos, mas a quem conseguir se envolver fica a estranha vontade de provar um pouco mais deste amargo universo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário