NOTA 6,5 Longa acompanha o cotidiano de um casal que vive uma união de fachada, uma situação que traz consequências para toda família |
Mais difícil que escrever um
roteiro ou concluir suas filmagens só mesmo a etapa de batizar um projeto.
Alguns filmes só ganham título após todas as fases de produção terem sido
concluídas, quando já se tem a ideia concreta do que o produto será. Outros
trabalhos só ganham seu pontapé inicial, inclusive a redação da história,
quando já estão intitulados. Dar nome a
um filme é muito complicado e é curioso quando a junção de algumas simples
palavras podem passar ao público sentidos diferenciados. A Vida Secreta dos Dentistas é
um bom exemplo. Embora seja claramente uma obra alternativa pela penca de
indicações e participações em festivais que ostenta, com certeza quem se arrisca
a assistir a este trabalho guiando-se pelo título se decepciona, inclusive os
próprios profissionais da área de odontologia que não resistem a dar uma
conferida. Ele remete a muitos
espectadores a ideia de comédia, mas o nome cai como uma luva para este
drama conjugal que envolve obviamente os dentistas, seus assépticos ambientes
de trabalho e uma temática universal, mas cujo ritmo lento e ausência de
momentos arrebatadores acabam trabalhando contra a obra em termos comerciais. Baseado
no romance “The Age of Grief”, de Jane Smiley, o roteiro de Craig Lucas
acompanha o cotidiano do casal Dana (Hope
Davis) e David Hurst (Campbell Scott) que não dividem apenas a cama, mas também
trabalham juntos em um consultório dentário. Quando estão em casa eles dedicam
atenção para as três filhas pequenas, porém, no trabalho mal se falam optando
por respeitarem suas individualidades. E tempo para eles dois? Perecbe-,
portanto, que a aparente limpeza da clínica pode esconder germes e bactérias. Dana
é apaixonada por ópera e participa do coro de uma produção teatral e em breve
irá fazer uma apresentação. No dia do espetáculo, David encontra motivos para
desconfiar que sua mulher o traia e passa a perceber que ela tenta se esquivar
constantemente da família e do trabalho, provavelmente para poder ter seus
encontros com o amante. Ao contrário da reação da maioria dos maridos traídos,
ele resolve levar toda a situação com panos quentes, mas sem tirar os olhos de
cima da esposa, chegando até mesmo a ter visões dela tendo relacionamentos com
outros homens no próprio consultório. Todavia, a ruptura da família parece
eminente, mas um problema inesperado de saúde que atinge a todos os membros pode
uni-la novamente.
Uma boa sacada do roteiro,
embora usada além da conta, é a introdução de um personagem extra para bagunçar
ainda mais a relação dos Hursts. Em determinado momento Dave começa a sofrer
alucinações e sua imaginação acaba sendo materializada em forma de um
sarcástico alter ego, Slater (Denis Leary), que surge primeiramente como um
delírio enquanto ele voltava para casa após o trabalho. Depois tal aparição
começa a se tornar constante aparecendo como um paciente que acaba emitindo
comentários cheios de veneno a respeito do cotidiano destes dentistas e dando
conselhos duvidosos para tentar ajudar Dave a lidar com a esposa, um papel
semelhante ao daquele diabinho que aparece de repente para tentar o inocente,
mas aqui disfarçado de conselheiro amoroso. Filmes com pretensões de serem
reconhecidos como obras alternativas, ainda que busquem alguma comunicação com
as plateias mais populares, e que mantenham o foco das atenções em pequenas situações
do cotidiano de seus personagens não precisam necessariamente apresentar um
tradicional final feliz ou então podem apostar em uma felicidade momentânea. É
por esse viés que esta obra se baseia, apresentando apenas um fragmento, uma
etapa da vida de um casal de dentistas que passa por dificuldades no
relacionamento, algo comum após certo tempo de união. Para justificar a trama,
fatos comprometedores vão surgindo para aumentar as desconfianças do marido a
respeito da traição da esposa, mas a própria vida se encarrega de intervir de
certa forma para unir o casal novamente e consequentemente a família. Pela
opção de Dave em não falar sobre suas desconfianças e não concordar com o
comportamento leviano de Dana, ele acaba sem querer alimentando uma união de
fachada que não faz apenas mal a ele ou a esposa, mas atinge em cheio também as
filhas. A tensão psicológica e emocional que se instala no seio desta família
acaba evoluindo para um quadro de doença física. Pouco a pouco todos os membros
do clã começam a sentir enjôos, dores no corpo e distúrbios intestinais, mas o
diagnóstico do médico não aponta um resultado conclusivo. As suspeitas são de
que tais sintomas sejam manifestações somáticas provocadas por nervosismo em
excesso. Só por este gancho, que reflete muito dos malefícios dos novos tempos
em que manter as aparências parece uma regra para se viver bem perante a sociedade,
já vale uma conferida nesta obra.
Discípulo do famoso Robert
Altman, o cineasta Alan Rudolph, de À
Beira da Louura, constrói aqui uma investigação da vida de uma família
americana de classe média, explorando o trabalho, o convívio com a família e centralizando
as dúvidas e conflitos na pele do personagem de Scott que está em crise de meia
idade, acha seu emprego enfadonho e talvez não tenha percebido que se a esposa
o trai é porque ele próprio não se dedica ao casamento, o velho problema pelo
qual a maior parte dos casais passa com a chegada dos filhos. No meio desse
turbilhão de emoções, que ao mesmo tempo em que capta as emoções do espectador
também pode incomodar, o diretor tenta refrescar as coisas através do
personagem de Leary responsável por bons e divertidos palpites, um interessante
recurso narrativo usado, por exemplo, por Woody Allen em Sonhos de Um
Sedutor. O protagonista leva a situação da dúvida da traição
cozinhando em fogo brando, como se esperasse a esposa tomar a iniciativa de
acabar ou não com o relacionamento deles. Só mesmo quando as coisas se tornam
mais explícitas sua conduta muda, uma metáfora implícita aqui, como aquele
sujeito que só procura os serviços do dentista em último caso. Aliás, tudo aqui
pode ser visto através de um ângulo odontológico, o que já fica explícito pela
abertura que faz uma explanação sobre a composição das estruturas dentárias
explicitando o velho ditado que diz que você é o que você come, mas
acrescentando ainda que muito da personalidade de um indivíduo pode ser
deduzido através dos seus cuidado para manter a saúde bucal. A união dos
protagonistas é tão artificial quanto a sensação que temos ao escovar os dentes
com um creme dental que promete clareamento instantâneo. As cáries são
representadas pelos desentendimentos velados do casal. As tentativas para
colocar nos eixos a vida conjugal neste caso se arrastam por um bom tempo,
assim como um tratamento dentário. Por fim, fica para os pacientes a decisão se
levam os procedimentos até o fim ou se vão preferir transformar uma dor aguda
em um problema crônico. A Vida
Secreta dos Dentistas é uma obra singular, sensível e com
um roteiro linear e sem surpresas, mas a condução do tema foi bem explorada e
de forma muito digna, sem recorrer aos clichês dos filmes sobre traição,
seguindo a risca a tradição dos longas que já nascem irremediavelmente
impregnados de aura alternativa. Todavia faltam elementos para tornar esta obra
um produto acima do regular. A passividade do casal principal em alguns
momentos talvez seja o grande problema. De qualquer forma, tal qual uma ida ao
dentista, esta é um opção que deixa você com uma sensação diferenciada ao
subirem os créditos finais. Boa ou ruim, tudo depende da sensibilidade de cada
um.
Drama - 101 min - 2002
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