sábado, 28 de outubro de 2023

O HOMEM INVISÍVEL (2020)

 

Nota 8 Adaptação de trama clássica é digna de elogios por sua atualização contextual e visual

Drácula, Frankenstein e Múmia são alguns personagens clássicos de terror que vira e mexe são reverenciados pelo cinema. Coincidentemente, todos tiverem célebres filmes na época áurea dos Monstros da Universal, referência ao estilo carro-chefe do estúdio até então. Todavia, alguns tipos da época não fizeram o mesmo sucesso, mas o que não deu certo lá atrás pode ser reavaliado e transformado, como prova O Homem Invisível. Apesar do título homônimo à produção datada de 1933, que por sua vez foi inspirado no conto do autor britânico H.G. Wells, o longa não preserva outros vínculos com o passado. Esta versão tem uma temática muito mais atual e reflexiva que analisa efeitos de traumas e histórias de abusos a partir dos percalços vividos por Cecilia (Elisabeth Moss), uma mulher que foge de um relacionamento abusivo com o cientista milionário Adrian (Oliver Jackson-Cohen), este que já lhe havia prevenido que não importa onde estivesse ele a encontraria. Por pouco ele não evita sua fuga na calada da noite,  mas sua cunhada Emily (Harriet Dyer) consegue resgatar a irmã a tempo. Uma nova vida define a protagonista, ainda mais depois que descobre que o marido cometeu suicídio.

Por causa da relação conflituosa com a irmã, Cecilia vai passar algum tempo com James (Aldis Hodge), um policial extremamente simpático e acolhedor, pai de Sydney (Storm Reid), adolescente que em alguns momentos flerta com situações de humor para ajudar a hóspede a superar os traumas, todavia, esquecer as lembranças ruins será impossível. Pouco tempo depois de se instalar na casa dessa família, esta mulher passa a viver momentos inexplicáveis como se estivesse sendo observada a todo instante, inclusive ela sente certa presença física em determinados momentos. Seria o espírito de Adrian a atormentando? Cecília está convicta de que não se trata de um caso sobrenatural. Como o ex é um premiado cientista e especialista em estudos ópticos, inclusive seus últimos estudos envolviam a possibilidade da camuflagem, ela tem a certeza de que ele arranjou alguma forma de ficar invisível para assim persegui-la e lhe pregar sustos. Embora ela esteja em sã consciência, tudo o que vivencia de anormal é ignorado por quem convive com ela até chegar ao ponto de ser tachada como insana e de vítima passar a ocupar o lugar de agente ameaçador.

A sinopse poderia indicar um terror psicológico promissor, que brincaria com a dúvida da existência ou não do tal homem invisível, mas o diretor e roteirista de Leigh  Whannell, autor das tramas de Jogos Mortais e Sobrenatural, rejeita tal caminho e opta por induzir o espectador e a própria protagonista a terem certeza que Adrian está vivo. O problema é como saber onde ele está e como capturá-lo. A dificuldade para sair de casa e a insegurança para fazer atividades simples, como buscar a correspondência ou se concentrar em uma entrevista de emprego, dialogam diretamente com o medo que Cecília tem de voltar a viver com uma pessoa que lhe fez tanto mal. Mesmo antes da suspeita de Adrian retornar invisível, ele já a está perseguindo de certa forma em pensamentos. Saber que as consequências da violência doméstica são muito mais ameaçadoras do que um fantasma é a prova que Whannell entendeu como fazer uma boa atualização de um clássico. Sem abrir espaço para outro ponto de vista que não seja o da protagonista, o diretor conseguiu criar um filme que funciona pela tensão oferecida ao público geral, mas que pode ter um significado mais intenso para quem já passou por relacionamentos abusivos.

Whannell usou o material de Wells como uma inspiração leve, que se limita ao simples poder de invisibilidade de um cientista.  Dessa forma, além de inserir temáticas contemporâneas relevantes,  o cineasta evita o excesso de efeitos visuais e dos clichês básicos dos filmes de horror, como ambientações escuras e com aparência de abandono. O design de produção é bastante clean, contemporâneo, excessivamente iluminado e conectado com as tecnologias mais atuais. A direção prioriza o minimalismo e o silêncio, assim um simples enquadramento de uma porta ou cadeira é o bastante para colocar o espectador no lugar da protagonista e imaginar o que de surpreendente pode surgir. Moss praticamente carrega o filme nas costas com uma atuação crível. Por mais que sofra pressões psicológicas, em nenhum momento sua personagem relaxa ou baixa a guarda. Vale ressaltar que o diretor dispensa cenas para mostrar os tipos de agressões que Cecília sofria, nem mesmo flashbacks são adicionados, afinal a introdução já deixa subentendido que a protagonista se sentia coagida de várias formas. A localização da residência em região isolada é estratégica para os planos de Adrian que poderia manter a esposa sob vigilância e, não importa o que fizesse, não daria chances para a mulher pedir socorro.

É impossível assistir a esta obra e não nos remeter diretamente a premissa de Dormindo Com o Inimigo, ambos com a mulher oprimida tentando refazer sua vida, mas mais cedo ou mais tarde tendo que acertar as contas com seu algoz. Também ficam claras referências à O Homem Sem Sombra, que por sua vez é uma versão não creditada do romance de Wells e que causou mais frisson pelas novidades para a época no campo dos efeitos especiais que pelo enredo em si. O Homem Invisível consegue equilibrar satisfatoriamente drama e ficção científica e reforça a possibilidade de alguns monstros do passado ganharem retorno com dignidade, obviamente adaptando a atrama às necessidades contextuais das plateias contemporâneas. Whannell ousou a abordar temas complexos em um gênero que costuma dispensar reflexões. Traumas, tristezas, opressão e machismo. São temas que fazem parte das sociedade a séculos, mas que hoje em dia parecem mais em evidência. Se o filme aflige e incomoda é porque não se intimida a trazer à tona verdades duras que preferiríamos não ver uma vez que a violência nos mais diversos estilos se torna cada vez mais normalizada. Não temos aqui apenas um entretenimento, mas um manifesto a dignidade da mulher. 

Suspense - 124 min - 2020

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