NOTA 9,0 Em tom de fábula, acrescido de temas atuais e relevantes, longa conta uma história de amor atípica ao mesmo que exalta os diferentes |
O clássico conto de "A Bela
e a Fera" apresenta uma história de amor entre uma jovem comum e um
monstro, mas ao final, descobrindo o sentimento do amor, ele se transforma em
um belo rapaz. Na vida real tal mágica não acontece, mas por que não amar o
feio ou esquisito? Uma ode aos desajustados, aos incompreendidos, esta é a
grande proposta da fantasia com toques de drama e romance A Forma
da Água, mais um imaginativo filme assinado pelo espanhol
Guillermo del Toro. Lançado no Festival de Veneza, no qual sagrou-se campeão, o
longa seguiu uma vitoriosa carreira arrebatando diversos prêmios até culminar
no merecido Oscar. Pode-se dizer que o diretor fez uma adaptação do clássico
"O Monstro da Lagoa Negra" para contar uma história de amor nascida
em meio a época da Guerra Fria. Em meados da década de 1960, Eliza Esposito
(Sally Hawkins) é uma solitária mulher e sem o dom da fala desde a infância por
conta de um ferimento que destruiu suas cordas vocais, mas nem por isso é uma
pessoa infeliz. Faxineira noturna em uma base secreta do governo
norte-americano, ela tem bastante serviço diariamente, incluindo os cuidados
com o laboratório, local que recebe em segredo uma estranha criatura aquática,
com característica humanas e simultaneamente anfíbias, capturada nos confins da
América do Sul. Ela foi trazida pelo sádico e moralista agente policial Richard
Strickland (Michael Shannon), a própria personificação do racismo, sexismo e
complexo de superioridade. Curiosa, a auxiliar de limpeza acaba descobrindo o
que os cientistas tanto prezam em esconder e se afeiçoa ao tal ser e é
correspondida, fazendo jus ao ditado popular que diz que quem ama o feio bonito
lhe parece. Nas madrugadas, eles escutam música, comem ovos cozidos e acabam se
apaixonando, muito pelo fator da identificação já que ambos demonstram extrema
generosidade e não conseguem se comunicar por falas, apenas por gestos e
olhares. Quando os agentes do governo decidem usar a descoberta como cobaia nos
processos da corrida espacial, Eliza decide protegê-lo e conta a com a ajuda de
Giles (Richard Jenkins), seu vizinho, Zelda (Octavia Spencer), sua colega de
trabalho, e do Dr. Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), um cientista que se
encontra em um dilema moral em meio a um mundo político.
Ficasse restrito ao aspecto
lúdico, o longa já teria garantido seu lugar de destaque na História do cinema,
mas del Toro vai além inserindo componentes que conferem ainda mais estopo a
essa complexa e madura obra. O roteiro, escrito pelo próprio cineasta em
parceria com Vanessa Taylor, assimila temas atuais e relevantes sem deixar de
lado o aspecto fantasioso, além é claro de não perder a oportunidade de
satirizar a paranóia anticomunista e as tensões envolvendo os EUA contra a
antiga União Soviética em plena efervescência da Guerra Fria. Nunca resvalando
no inverossímil, aliar o inexplicável com assuntos sérios e algumas pitadas de
terror ou suspense é algo bastante característico na filmografia do espanhol,
como é comprovado nos elogiados A Espinha
do Diabo e O Labirinto do Fauno. O
maior mérito está na construção dos personagens que não só causam empatia
imediata como também nos oferece a oportunidade de os conhecermos intimamente
com uma sensibilidade ímpar. Embora neste caso use como base os arquétipos mais
clássicos dos contos de fadas, a trama não reprime seu excêntrico par
romântico. Aquela que seria a Bela da história não é tão casta e tampouco
indefesa e quem representaria a Fera não precisa de cura ou redenção, apenas
ser compreendido ou no mínimo respeitado. Nesse contexto, Strickland surge não
como um vilão que deseja a destruição
desse amor por interesse na mocinha, mas seus atos são justificados
simplesmente pela maldade que assola seu coração, consequência provavelmente de
uma criação familiar problemática. Propositalmente caricato, Shannon constrói
um personagem apoiado em atitudes bipolares. Quando o filme revela sua rotina
como pai de família, o mostrando como alguém moralista e até religioso, o faz
com o objetivo de contrapor às suas reações em ambiente de trabalho, onde
demonstra certo prazer torturando a criatura com choques elétricos e se
aproveita de sua posição superior para assediar sexualmente suas subordinadas.
Seu bom desempenho, porém, não é mais relevante que o excelente trabalho
desenvolvido por Doug Jones, intérprete especializado em dar vida a figuras
bizarras cujas caracterizações sempre impedem de conhecermos as reais feições
do ator. Embora com aspecto medonho, ele constrói um personagem dócil e
cativante e desde sua primeira aparição passamos a torcer para que não seja uma
vítima fatal de pessoas mesquinhas e ignorantes. Sua criação justifica o título
do filme que não se refere a um aspecto físico que a água poderia adquirir. Ele
simplesmente é a forma de vida desconhecida cuja sobrevivência depende da manutenção
do seu corpo sempre umedecido. Enquanto isso, Spencer funciona como um
bem-vindo alivio cômico e ombro amigo da protagonista, mas o perfil de sua
personagem poderia ser melhor explorado visto que trata-se de uma imigrante que
também não está livre de preconceitos, principalmente por conta de sua etnia.
Se a tal criatura à primeira
vista é o grande chamariz do filme, ainda nos primeiros minutos mudamos
completamente de opinião. A produção tem como grande destaque o trabalho de
Hawkins, atriz subaproveitada talvez justamente por um dos assuntos que o longa
se propõe a discutir: o preconceito. Ninguém assume, mas para uma atriz tão
talentosa o currículo sem grandes sucessos ou relevantes produções acaba por
revelar que para os padrões da grande indústria ela não se encaixa simplesmente
por não ser dotada de uma beleza estonteante, ser apenas uma mulher com aspecto
comum. Em A Forma da Água, mesmo sem dizer
uma palavra sequer, ela prova ter muito mais atributos artísticos que muita
intérprete badalada. Ela fala com seu corpo, gestos e olhares e se comunica de
maneira universal. Todos entendem o que quer dizer, seus pensamentos e até
mesmo suas ironias. Seu relacionamento com o ser desconhecido preenche sua vida
que antes era vazia e sem sentido, tendo como válvula de escape para a rotina o
apreço por musicais, o que justifica a aparição da cantora Carmem Miranda em
determinado momento em um videotape. Aliás, merece destaque a trilha sonora
diversificada que ajuda a transportar o espectador para a época cuja
reconstituição estética detalhada usa e abusa dos tons esverdeados e azulados
dando um aspecto frio e instável a toda ação tal qual os tempos de conflitos
propiciavam. Apesar dos duros temas abordados e da própria atmosfera propositalmente
escurecida, o longa jamais torna-se pesado prevalecendo o clima lúdico do início
ao fim. Mais que declarar seu apreço pelo bizarro, del Toro consegue conduzir
sua obra com uma aura clássica acessível, mas ao mesmo tempo a mantendo complexa
e original. Sem apresentar grandes reviravoltas e com uma conclusão rápida e
morna, a produção prova que nem sempre o importante é o clímax do filme, mas sim
qual será o caminho trilhado até ele. Ao final, por trás da aura onírica,
certamente você irá refletir sobre a maneira que lida ou simplesmente observa a
quem julga ser diferente.
Drama - 121 min - 2017
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