Nota 8 Família de estilo alternativo revê seus conceitos quando enfrenta inevitável choque cultural
Viver em meio à natureza, sem compromissos com horários ou preocupações com trabalho e até mesmo dispensar o uso roupas. Um sonho, não é? Mas quem disse que viver isolado do mundo não implica certas regras e conceitos. De forma bastante descontraída Capitão Fantástico aborda tal tema e coloca o público para repensar a maneira que encaram suas vidas. Leslie (Trin Miller) e Ben Cash (Viggo Mortensen) resolveram levar uma vida calcada na utopia ao lado dos seis filhos. Fugindo do mundo corporativo, do capitalismo e do consumismo, a família vive em uma cabana incrustada em uma floresta e seu cotidiano baseia-se no preparo físico intenso, trabalhos manuais, treino de sobrevivência, mas também há espaço para a cultura através de leituras, apreciações de músicas e muito diálogo franco entre todos eles. Até as crianças menores aprendem a lidar com armas e tem aulas de educação sexual sem rodeios. Televisão, celulares e internet nem pensar. Entretanto, uma crise abala o clã quando a matriarca manifesta certa bipolaridade, o que a força a voltar para a civilização em busca de tratamento e os desdobramentos do caso forçam o restante da família a deixar o convívio com a natureza, mesmo que momentaneamente. Os jovens então passam a questionar o estilo de vida que levam e é hora do paizão mostrar a força de seus ideais e apartar o deslumbramento e sentimento de inferioridade que recai sobre sua turminha. Ou talvez ele próprio repensar seus conceitos.
O longa apresenta a intimidade desta família nada convencional a partir da ausência de Leslie, o que implica em um reencontro com os pais dela, Abigail (Ann Dowd) e Jack (Frank Lnagella), este que em um primeiro momento pode ser visto com tons de vilania, mas não é surpresa alguma que o idoso não aceita o estilo de vida que o genro defende e o acusa de ter desvirtuado sua filha e agora faz o mesmo com seus netos. Seus argumento são válidos, mas Ben tem sempre uma resposta inteligente na ponta da língua para retrucar. É o choque de culturas que dá a tônica do filme que se alterna entre momentos divertidos e outros reflexivos. Seria realmente possível viver em harmonia com a natureza desprezando por completo o apelo do consumismo? A certa altura, vemos a trupe arquitetando um intricado plano para roubarem mantimentos em um supermercado, provando que nem só de caça ou colheita poderiam sobreviver, o que os afasta do estilo totalmente primitivo, embora em outra cena vemos o filho mais velho matando um veado a facadas e presenteando os irmãos com um mesmo tipo de arma como se quisesse dizer que eles precisam ter sangue frio e matar animais para terem o que comer ou que precisam treinar para se defenderem quando necessário.
O personagem-título é um homem cheio de convicções, inteligência e que acima de tudo ama seus filhos, tentando propiciar a eles uma vida saudável e feliz mesmo longe dos modismos, bugigangas e fast foods tão enraizados na cultura de um adolescente ianque tido como normal. E isso implica muito na educação e conhecimento de seus rebentos. Isso fica claro quando o clã faz uma visita para a tia paterna Harper (Kathryn Hahn) e seu marido Dave (Steve Zahn). Entre muitas trocas de farpas, já que Ben não tem papas na língua e faz questão de recordar os comentários maldosos que já ouviu do casal a respeito de sua família e conceitos, é excepcional e pertinente a cena em que o pai sabatina os filhos na frente dos primos e tios deles mostrando o quanto adquiriram de conhecimentos gerais, incluindo sobre política e filosofia, mesmo fora de uma escola tradicional, provando que a leitura e o diálogo ainda são fundamentais para a formação de um ser humano. Buscando a total independência dos jovens assim como a fuga da alienação, o casal Cash os educou de formar a compartilhar tarefas, dominar vários idiomas e até mesmo o Natal desprezarem, substituindo a adoração pela figura fictícia do Papai Noel pela celebração da memória de Noam Chomsky, um notório intelectual ativista norte-americano.
Ator de pequenos papeis em longas de certa visibilidade como Psicopata Americano e O Aviador, Matt Ross nunca viu seu nome brilhar como intérprete, mas assim como tantos outros parece ter encontrado seu lugar atrás das câmeras. Assinando também o roteiro, ele propõe uma mistura de Pequena Miss Sunshine com Na Natureza Selvagem e demonstra total domínio das técnicas necessárias para conduzir uma trama que aborda diferentes perspectivas sobre códigos familiares, sociais e ideológicos. Seguindo a linha dos chamados road movies (produções que abordam situações trágicas ou divertidas ocorridas em meio à viagens), o filme se alterna entre o humor, a crítica e o melodramático, este último rotulando a fita em um gênero específico. Ainda que carregue a alma de um filme independente, até por ser uma produção de custos baixíssimos para o padrão de Hollywood, Capitão Fantástico apresenta um vigoroso trabalho de design de produção, fotografia, montagem e trilha sonora, com destaque para a cena final quando uma bela canção é entoada pela família comprovando que o amor que os une não há dificuldade alguma capaz de o destruir por completo.
O roteiro é inteligente e questionador sem deixar de ser divertido ao retratar pessoas que buscam um mundo diferente do que vivemos, sem ódio ou imposições, tudo em nome da paz. Ross não se faz de dono da razão e permite que o espectador apóie ou não a escolha da família em viver isolados, algo que fica claro quando tios, primos e avós expõe seus pontos de vistas em cenas bastantes provocadoras. Embora bastante convicto de seus ideais, chega o momento que Ben passa a compreender que não poderia impor suas escolhas aos filhos, que eles tem o direito de viver suas vidas como bem entenderem. Grande parte da empatia do filme se deve ao fato do elenco talentoso nos transmitir a sensação de que realmente estamos diante de uma família de verdade, pessoas reais defendendo ideais libertários e não simples revoltados. Pena que as meninas do clã não tenham um arco dramático definido tal qual os membros masculinos, mas nada que diminua o encanto deste filme singular e, apesar dos pesares, de uma alegria contagiante.
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