quinta-feira, 22 de junho de 2017

ILUMINADOS PELO FOGO

NOTA 8,5

Longa de guerra argentino segue
cartilha do gênero e mostra o
sofrimento de soldados que jamais
tiveram suas memórias exaltadas 
Qualquer país teoricamente tem o direito de evocar problemáticas e fatos históricos de outros territórios, basta ter consciência do negócio de risco que é investir em tramas que podem ser alheias ao público local e até mesmo para a equipe realizadora. Imagine, por exemplo, a nossa Guerra de Canudos ou dos Farrapos sob a ótica norte-americana. Por mais pesquisas que fossem feitas, o resultado dificilmente seria natural, faltaria nossa identidade na tela de alguma forma. Seria ainda pior se os conflitos retratados também respingassem na rotina do tio Sam, o que possivelmente implicaria na alteração do conteúdo histórico (a favor dos ianques, claro). Clint Eastwood foi um dos raros cineastas que teve a ousadia de mostrar os dois lados da moeda ao lançar no mesmo ano A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, ambos sobre o final da Segunda Guerra Mundial, o primeiro apresentando a heroica versão dos fatos sob o ponto de vista americano e o outro relatando o episódio pela ótica do Japão. A Guerra das Malvinas é outra passagem importante da História mundial. Embora não envolvesse diretamente os EUA, o pessoal de lá acompanhou o desenrolar dos fatos atentamente por um detalhe em especial: Margaret Thatcher, uma mulher que marcou a trajetória política da Inglaterra por sua coragem e força de vontade para ser ouvida em um universo dominado pelos homens, ousadia que mais cedo ou mais tarde também poderia incentivar as americanas a sonharem com a escalada no mundo do poder. Também estavam atentos que por envolver a disputa de territórios, ficava clara a tentativa britânica de se firmar como uma grande potência. O drama A Dama de Ferro narra a vida pessoal e política de Thatcher dando atenção especial ao episódio das Malvinas, mas o longa, apesar dos prêmios à arrasadora performance de Meryl Streep, colheu críticas negativas por parte de especialistas que afirmam que os fatos foram “floreados” para colocar a então Primeira Ministra Britânica na posição de heroína. A disputa da Inglaterra pelo controle das Ilhas Malvinas ocorreu em um sangrento conflito com a Argentina, país que por conhecimento de causa tinha todo o direito de expor sua versão dos fatos e assim foi feito no emocionante e pouco conhecido Iluminados Pelo Fogo, baseado no livro homônimo de Gustavo Romero Borri e Edgardo Estevan, este que foi um dos homens que serviu como soldado no conflito deflagrado em 1982.

O livro narra as experiências vivenciadas pelos primeiros argentinos a visitarem o território das Malvinas em 1999, quase vinte anos após o fim do conflito, mas é óbvio que para quem esteve em combate a viagem teve um gostinho misto de excitação e melancolia. Em comparação a outras guerras esta teoricamente foi curta, mas os soldados viveram 74 dias de embates, angústias, exposição a doenças, problemas físicos, desnutrição e até maus tratos por parte dos próprios comandantes militares, tudo que voltará a tona na mente do protagonista, o jornalista Esteban Leguizamón (Gastón Pauls), que quando tinha apenas 18 anos foi levado para lutar pela Argentina que reivindicava o reconhecimento de que as terras de tais ilhas pertenciam ao seu território. O pior é que a operação foi arquitetada a toque de caixa e os enviados não estavam preparados e nem havia material adequado. Como o filme é apenas inspirado no livro de memórias, o diretor Tristán Bauer (que assina o roteiro em parceria com os autores do livro e Miguel Bonasso) tomou algumas liberdades como dividir a ação entre os eventos ocorridos entre abril e junho de 1982 e uma situação dramática desenvolvida na época contemporânea (na verdade 2004, ano de produção do filme que só chegou ao Brasil três anos mais tarde). A tentativa de suicídio de Alberto Vargas (Pablo Ribba), que também atuou no conflito, faz com que Esteban, agora com 40 anos, recobre tudo de ruim que vivenciou, mas ao mesmo tempo relembre de histórias de amizade e companheirismo do tempo que dividiu com outros jovens que mesmo na iminência da morte ainda faziam planos para um futuro incerto. Nesse turbilhão de emoções, com o qual convivia razoavelmente bem até então ao contrário de Vargas que claramente não suportava as cicatrizes da guerra ainda que tivesse o apoio de sua amável esposa Marta (Virginia Innocenti), o jornalista toma coragem e decide voltar às Malvinas para se reencontrar com seu passado e definitivamente fechar velhas feridas. Além de este ser o primeiro filme de guerra do cinema argentino contemporâneo, Bauer tinha a missão de dirigir apenas o segundo longa a abordar tal conflito. O primeiro, Os Meninos da Guerra, foi filmado pouco tempo depois do término da batalha, mas caiu no ostracismo. Para não repetir o erro, o cineasta tomou cuidado em oferecer uma parte técnica de primeiríssima qualidade que em nada fica a dever às produções do gênero de Hollywood, mas seu grande trunfo é o roteiro que desbrava uma mancha negra na História da Argentina. Esta seria a primeira vez que um filme sobre as Malvinas era realizado no próprio local, ainda que parcialmente. Há motivos para as ilhas terem ficado inativas por muitos anos já que as marcas da guerrilha ainda estavam muito presentes. Além do cercado que delimita um espaço onde mais de 25 mil explosivos permaneciam enterrados sob o solo devido aos perigos que cercariam suas desativações, durante as filmagens foram encontrados objetos pessoais dos combatentes o que prova que desde o cessar fogo as terras que foram alvos de uma torturante disputa rapidamente foram esquecidas, não passavam de um capricho para impor poder.

Realmente a sensação é que muito sangue foi derramado em vão. As Ilhas Malvinas, também conhecidas como Falklands, durante muitos séculos foram consideradas como parte do território espanhol, mas ingleses já espichavam os olhos para elas desde meados do século 18. De qualquer forma, continuaram sob domínio da Espanha até a independência da Argentina que, por sua vez, as perdeu para os britânicos que as tomaram à força por volta de 1833. O episódio foi mal digerido por nossos hermanos e foi desenterrado durante o clímax da ditadura militar argentina. O governo do então presidente Galtieri estava de mal a pior e ele precisava de alguma estratégia que resgatasse o espírito patriótico em sua gestão. Já Thatcher, a dama de ferro inglesa, viu no conflito a chance de brigar também em nome do patriotismo e de quebra aumentar seu prestígio junto a opinião pública e se firmar na política. Assim como uma Copa do Mundo consegue mobilizar todo um país e momentaneamente fazer o povo esquecer problemas em prol da honra, Argentina e Inglaterra fizeram uso de um embate para escamotearem sujeiras políticas aproveitando a mudança de foco de suas respectivas populações, só que não levaram em consideração o sofrimento que isso causaria a centenas de jovens que tiveram sonhos interrompidos, mesmo para aqueles que sobreviveram, mas que jamais voltariam a ser os mesmos. O jornalista Esteban da vida real, o autor do livro, claramente elegeu o protagonista como seu alter-ego e o próprio declarou que viu na escrita a melhor forma de se libertar de traumas que nem a terapia o fez esquecer e acreditava que o filme contribuiria para levar seu país a debater sobre o episódio, as mesmas sociedades hipócritas que obrigaram os sobreviventes a se calar poderiam reavaliar o assunto. Não é estragar surpresa alguma dizer que no final das contas a Inglaterra saiu vencedora da causa e os militares argentinos forçosamente foram obrigados a assinar declarações firmando o compromisso de não falarem mais sobre o que aconteceu. A tentativa de esconder a vergonha do fracasso se estendeu de certa forma ao restante dos hermanos que simplesmente ignoraram o retorno daqueles que foram iludidos com a ideia que seriam saudados como heróis. O tempo só confirma isso. Além dos 265 argentinos mortos em combate, mais de 300 cometeram suicídio ao tentarem retomar suas vidas, mas as lembranças ruins e o descaso do governo impediram. O longa não aborda o destino dos soldados ingleses, mas certamente não deve ser muito diferente do que aconteceu com seus rivais. Vencedor e concorrente em algumas premiações internacionais, principalmente latinas, Iluminados Pelo Fogo inexplicavelmente não foi exibido no Brasil nos cinemas e acabou sendo lançado em DVD sem o cuidado que merecia. Seria culpa da famosa rixa dos brasileiros com os vizinhos? Por favor, que essa bobagem fique restrita ao futebol e olhe lá.

Drama - 100 min - 2004 

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1 – 2 Ruim, uma perda de tempo
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