NOTA 8,5 Longa de guerra argentino segue cartilha do gênero e mostra o sofrimento de soldados que jamais tiveram suas memórias exaltadas |
Qualquer país
teoricamente tem o direito de evocar problemáticas e fatos históricos de outros
territórios, basta ter consciência do negócio de risco que é investir em tramas
que podem ser alheias ao público local e até mesmo para a equipe realizadora.
Imagine, por exemplo, a nossa Guerra de Canudos ou dos Farrapos sob a ótica
norte-americana. Por mais pesquisas que fossem feitas, o resultado dificilmente
seria natural, faltaria nossa identidade na tela de alguma forma. Seria ainda
pior se os conflitos retratados também respingassem na rotina do tio Sam, o que
possivelmente implicaria na alteração do conteúdo histórico (a favor dos
ianques, claro). Clint Eastwood foi um dos raros cineastas que teve a ousadia
de mostrar os dois lados da moeda ao lançar no mesmo ano A Conquista da Honra e Cartas
de Iwo Jima, ambos sobre o final da Segunda Guerra Mundial, o primeiro
apresentando a heroica versão dos fatos sob o ponto de vista americano e o outro
relatando o episódio pela ótica do Japão. A Guerra das Malvinas é outra
passagem importante da História mundial. Embora não envolvesse diretamente os
EUA, o pessoal de lá acompanhou o desenrolar dos fatos atentamente por um
detalhe em especial: Margaret Thatcher, uma mulher que marcou a trajetória
política da Inglaterra por sua coragem e força de vontade para ser ouvida em um
universo dominado pelos homens, ousadia que mais cedo ou mais tarde também
poderia incentivar as americanas a sonharem com a escalada no mundo do poder.
Também estavam atentos que por envolver a disputa de territórios, ficava clara
a tentativa britânica de se firmar como uma grande potência. O drama A Dama de Ferro narra a vida pessoal e
política de Thatcher dando atenção especial ao episódio das Malvinas, mas o
longa, apesar dos prêmios à arrasadora performance de Meryl Streep, colheu
críticas negativas por parte de especialistas que afirmam que os fatos foram
“floreados” para colocar a então Primeira Ministra Britânica na posição de
heroína. A disputa da Inglaterra pelo controle das Ilhas Malvinas ocorreu em um
sangrento conflito com a Argentina, país que por conhecimento de causa tinha
todo o direito de expor sua versão dos fatos e assim foi feito no emocionante e
pouco conhecido Iluminados Pelo Fogo, baseado no livro homônimo de Gustavo
Romero Borri e Edgardo Estevan, este que foi um dos homens que serviu como
soldado no conflito deflagrado em 1982.
O livro narra
as experiências vivenciadas pelos primeiros argentinos a visitarem o território
das Malvinas em 1999, quase vinte anos após o fim do conflito, mas é óbvio que
para quem esteve em combate a viagem teve um gostinho misto de excitação e
melancolia. Em comparação a outras guerras esta teoricamente foi curta, mas os
soldados viveram 74 dias de embates, angústias, exposição a doenças, problemas
físicos, desnutrição e até maus tratos por parte dos próprios comandantes
militares, tudo que voltará a tona na mente do protagonista, o jornalista
Esteban Leguizamón (Gastón Pauls), que quando tinha apenas 18 anos foi levado
para lutar pela Argentina que reivindicava o reconhecimento de que as terras de
tais ilhas pertenciam ao seu território. O pior é que a operação foi
arquitetada a toque de caixa e os enviados não estavam preparados e nem havia material
adequado. Como o filme é apenas inspirado no livro de memórias, o diretor
Tristán Bauer (que assina o roteiro em parceria com os autores do livro e Miguel
Bonasso) tomou algumas liberdades como dividir a ação entre os eventos
ocorridos entre abril e junho de 1982 e uma situação dramática desenvolvida na
época contemporânea (na verdade 2004, ano de produção do filme que só chegou ao
Brasil três anos mais tarde). A tentativa de suicídio de Alberto Vargas (Pablo
Ribba), que também atuou no conflito, faz com que Esteban, agora com 40 anos,
recobre tudo de ruim que vivenciou, mas ao mesmo tempo relembre de histórias de
amizade e companheirismo do tempo que dividiu com outros jovens que mesmo na
iminência da morte ainda faziam planos para um futuro incerto. Nesse turbilhão
de emoções, com o qual convivia razoavelmente bem até então ao contrário de
Vargas que claramente não suportava as cicatrizes da guerra ainda que tivesse o
apoio de sua amável esposa Marta (Virginia Innocenti), o jornalista toma
coragem e decide voltar às Malvinas para se reencontrar com seu passado e
definitivamente fechar velhas feridas. Além de este ser o primeiro filme de
guerra do cinema argentino contemporâneo, Bauer tinha a missão de dirigir
apenas o segundo longa a abordar tal conflito. O primeiro, Os Meninos da Guerra, foi filmado pouco tempo depois do término da
batalha, mas caiu no ostracismo. Para não repetir o erro, o cineasta tomou
cuidado em oferecer uma parte técnica de primeiríssima qualidade que em nada
fica a dever às produções do gênero de Hollywood, mas seu grande trunfo é o
roteiro que desbrava uma mancha negra na História da Argentina. Esta seria a
primeira vez que um filme sobre as Malvinas era realizado no próprio local,
ainda que parcialmente. Há motivos para as ilhas terem ficado inativas por
muitos anos já que as marcas da guerrilha ainda estavam muito presentes. Além
do cercado que delimita um espaço onde mais de 25 mil explosivos permaneciam
enterrados sob o solo devido aos perigos que cercariam suas desativações,
durante as filmagens foram encontrados objetos pessoais dos combatentes o que
prova que desde o cessar fogo as terras que foram alvos de uma torturante
disputa rapidamente foram esquecidas, não passavam de um capricho para impor
poder.
Realmente a
sensação é que muito sangue foi derramado em vão. As Ilhas Malvinas, também
conhecidas como Falklands, durante muitos séculos foram consideradas como parte
do território espanhol, mas ingleses já espichavam os olhos para elas desde
meados do século 18. De qualquer forma, continuaram sob domínio da Espanha até
a independência da Argentina que, por sua vez, as perdeu para os britânicos que
as tomaram à força por volta de 1833. O episódio foi mal digerido por nossos
hermanos e foi desenterrado durante o clímax da ditadura militar argentina. O
governo do então presidente Galtieri estava de mal a pior e ele precisava de
alguma estratégia que resgatasse o espírito patriótico em sua gestão. Já Thatcher,
a dama de ferro inglesa, viu no conflito a chance de brigar também em nome do
patriotismo e de quebra aumentar seu prestígio junto a opinião pública e se
firmar na política. Assim como uma Copa do Mundo consegue mobilizar todo um
país e momentaneamente fazer o povo esquecer problemas em prol da honra,
Argentina e Inglaterra fizeram uso de um embate para escamotearem sujeiras
políticas aproveitando a mudança de foco de suas respectivas populações, só que
não levaram em consideração o sofrimento que isso causaria a centenas de jovens
que tiveram sonhos interrompidos, mesmo para aqueles que sobreviveram, mas que
jamais voltariam a ser os mesmos. O jornalista Esteban da vida real, o autor do
livro, claramente elegeu o protagonista como seu alter-ego e o próprio declarou
que viu na escrita a melhor forma de se libertar de traumas que nem a terapia o
fez esquecer e acreditava que o filme contribuiria para levar seu país a
debater sobre o episódio, as mesmas sociedades hipócritas que obrigaram os
sobreviventes a se calar poderiam reavaliar o assunto. Não é estragar surpresa
alguma dizer que no final das contas a Inglaterra saiu vencedora da causa e os
militares argentinos forçosamente foram obrigados a assinar declarações
firmando o compromisso de não falarem mais sobre o que aconteceu. A tentativa
de esconder a vergonha do fracasso se estendeu de certa forma ao restante dos
hermanos que simplesmente ignoraram o retorno daqueles que foram iludidos com a
ideia que seriam saudados como heróis. O tempo só confirma isso. Além dos 265
argentinos mortos em combate, mais de 300 cometeram suicídio ao tentarem
retomar suas vidas, mas as lembranças ruins e o descaso do governo impediram. O
longa não aborda o destino dos soldados ingleses, mas certamente não deve ser
muito diferente do que aconteceu com seus rivais. Vencedor e concorrente em
algumas premiações internacionais, principalmente latinas, Iluminados Pelo Fogo inexplicavelmente
não foi exibido no Brasil nos cinemas e acabou sendo lançado em DVD sem o
cuidado que merecia. Seria culpa da famosa rixa dos brasileiros com os
vizinhos? Por favor, que essa bobagem fique restrita ao futebol e olhe lá.
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