NOTA 8,5 Drama aborda as dificuldades para quem já esteve no topo se adaptar a ser alguém comum ou optar pelo caminho da superação |
Há momentos em que um ator está
em estado de graça e tem a sorte de abocanhar papeis que parecem ter sido
talhados a seu perfil, não só em termos físicos, mas também psicológicos e às
vezes até as trajetórias de ambos parecem guardar semelhanças. Dizem que um
raio não cai duas vezes no mesmo local, portanto, quando isso acontece é
preciso aproveitar. Mickey Rourke surgiu
nos anos 80 como promessa de galã e talento e realmente estava atendendo às
expectativas, mas na década seguinte sua decadência aconteceu em velocidade
impressionante. No entanto, suas próprias experiências de vida é que elevam o
nível de O Lutador que apesar do título não é um filme focado em
combates, mas sim em contar uma história humana e universal baseada em
conceitos de superação. O ator dá vida à Randy “The Ram” Robinson, um lutador
de enorme sucesso há alguns anos, mas duas décadas depois do seu auge sua
imagem nada lembra os tempos de glória. Sem dinheiro, sozinho e sendo consumido
pelo remorso de ter abandonado sua única filha, Stephanie (Evan Rachel Wood),
ele sobrevive participando de lutas amadoras e para público sádico e reduzido
que lhe garantem o dinheiro para pagar seus vícios e vida louca. No entanto, um
enfarto o obriga a se aposentar dos ringues de vez e nesse momento ele busca
consolo no colo de Cassidy (Marisa Tomei), uma stripper que o compreende
perfeitamente porque também já está em uma idade que mais cedo ou mais tarde
lhe custará a dispensa. Ela o aconselha a ir procurar sua filha e dar novos
rumos profissionais à sua vida e assim começa a grande luta de Randy na qual o
adversário é ele mesmo que precisará se conscientizar de que os tempos mudaram
e que ele não é sequer uma boa lembrança no mundo dos esportes. É interessante
observar que além dos dois ganharem dinheiro com o corpo e a idade ser um
empecilho para continuarem com suas atividades, ambos usam nomes falsos
profissionalmente, escondendo as reais identidades de Robin e Pam. Ela assume
outra personalidade por vergonha de seu trabalho, mas para ele o fardo é maior.
Ostentar o codinome é uma forma ilusória de acreditar em sua importância, mesmo
sendo um ilustre desconhecido que para pagar suas contas também se dedica a um
emprego de carregador em um supermercado. No entanto, com a aproximação do
aniversário de vinte anos da luta que o consagrou, surge o convite para um novo
embate com seu maior rival, Aiatolá (Ernest Miller), o que lhe deixa tentado a
desobedecer as orientações médicas.
Estreando como roteirista, a
trama é uma adaptação de Robert Siegel para um de seus próprios livros onde
narra a história de superação de um astro ficcional da luta-livre, porém, tal
história, obviamente com algumas modificações, também poderia ser a biografia
do próprio Rourke que durante um bom tempo abandonou a carreira artística para
se dedicar ao boxe e abraçar todos os malefícios da nova profissão (físico
desfigurado, problemas com anabolizantes, drogas e bebidas). Tanto o ator
quanto o personagem reforçam o estereótipo de quem se vê refém de um estilo
bizarro de vida que caracteriza a cultura dos esportes praticados em submundos
onde quanto mais violência e insanidade tiverem melhor. As pessoas vibram ao
ver os lutadores caindo, apanhando e até sangrando e para quem está dentro dos
ringues sair vitorioso desse vale-tudo é a glória das glórias. Apesar de
ostentar manchas e cortes pelo corpo que simbolizam sua garra no esporte, o
profissional do ramo tem suas vaidades afinal de contas a imagem do corpo
musculoso é essencial para transmitir confiança para o público e até mesmo ao
atleta. Fora o dinheiro contado para o aluguel, que muitas vezes não é pago, o
que não gasta com mulheres e em bares Randy usa para comprar drogas para inflar
seus músculos, óleos e preparados bronzeadores e ainda tintura de cabelo para
oxigenar suas longas e maltratadas madeixas que lhe garantem o apelido de
“carneiro”, mas que na hora da luta se transforma em um “touro indomável”. Hoje
as coisas podem não ser como antes, mas o brucutu gosta de se alimentar de
lembranças talvez na esperança de que um dia poderá recuperar todo o seu
prestígio. Ele dirige uma velha caminhonete com um boneco dele mesmo pendurado
no espelho da frente, os bancos do carro são forrados de fotos e recortes de
jornal que de certa forma documentam sua fase áurea e ainda se diverte com o
videogame cujo personagem principal é inspirado em sua própria figura. Ele ama
lutar, mas por diversos fatores se vê obrigado a se afastar dos ringues e, o
pior, encarar definitivamente a rotina de uma vida comum. Seu principal medo na
verdade é ser reconhecido e apontado como aquele que um dia foi um grande
lutador, mesma razão que provavelmente impedia seu intérprete de voltar a
atuar, ainda mais desprovido da beleza que outrora prometia rivalizar
eternamente com Tom Cruise e outros galãs de sua época. Aliás, o papel estava
destinado à Nicolas Cage que já havia assinado contrato e estava se preparando
para as filmagens, mas em um gesto bastante generoso concordou em entregar o
personagem à Rourke ao tomar conhecimento de que a trajetória do protagonista e
do ator guardavam íntimas semelhanças, o que só agregaria qualidades ao
projeto. Certamente com outro homem vivendo a realidade de Randy o filme não
seria o mesmo e talvez nem fosse merecedor dos elogios e indicações a prêmios
que conquistou.
Após várias plásticas para
amenizar um pouco dos efeitos negativos conquistados no esporte, Rourke ensaiou
sua volta aos holofotes em Sin City e
agarrou com unhas e dentes o papel de Randy que em uma rara coincidência parece
ter sido escrito para (exclusivamente) ele mesmo interpretar. Dotando o filme
de alma e retratando um universo que lhe é tão íntimo, o ator oferece uma das
interpretações mais naturais e sinceras dos últimos tempos recompensada com o
Globo de Ouro e uma indicação ao Oscar. A própria obra arrebatou o Leão de Ouro
de Melhor Filme no Festival de Veneza reascendendo o poder de atração do nome
de Darren Aronofsky. Elevado a potência do cinema alternativo logo em seus
primeiros trabalhos, Pi e Réquiem Para um Sonho, o diretor
decepcionou com o presunçoso Fonte da
Vida e já corria o risco de ser enquadrado nos casos de sorte de
principiante. O Lutador é seu trabalho mais simples até então no sentido de
atingir o emocional dos mais variados tipos de público, porém, sem abrir mão do
conteúdo. Adotando um estilo documental e utilizando em vários momentos a
câmera na mão, atores amadores nos papéis secundários e até mesmo
representantes do próprio mundo das lutas, o cineasta teve a preocupação de se
cercar de elementos capazes de lançar o espectador rapidamente ao melancólico
cotidiano de Randy. Realmente não é muito entusiasmante o visual do
protagonista e tampouco seu universo, assim participar da trama tem que ser uma
decisão tão rápida quanto aplicar um golpe no adversário. Uma vez baqueado a
tendência é se acostumar com a dor e é assim que acompanhamos a trama, com um
misto de amargura e excitação para saber qual a próxima boa ideia de Aronofsky.
Existem dois momentos bastante simbólicos e que devem mexer com o público, principalmente
para aqueles que já precisaram abrir mão de sonhos em prol da sobrevivência.
Quando é impedido de vez de lutar por conta dos excessos que pontuaram sua
vida, Randy recebe uma promoção no supermercado e de carregador passa a atender
no balcão de cortes de frios. Enquanto entra no local, ouvimos o público
ovacionando-o como se ele estivesse em seus dias de glória, uma ironia
interessante pela frustrante situação. Ainda é possível sentir o turbilhão de
sentimentos que passam dentro dele ao ouvir os comentários dos fregueses que
insistem em dizer que ele lembra a alguém famoso. E é essa a grande discussão
do filme. Mostrar as dificuldades de alguém que já esteve no topo se acostumar
a galgar novamente os degraus do sucesso com o agravante de ter que se adaptar
a um novo caminho. Ou é possível correr atrás do prejuízo e restabelecer sua
posição onde sua fama foi construída? Rourke aproveitou a chance, embora
aparentemente sua carreira ainda esteja emperrada pelas limitações que seu
visual surrado acarreta, mas o final do filme em aberto serve como metáfora a
vida de seu intérprete e a de qualquer ser humano, afinal todos buscamos um
momento ápice em nossas trajetórias. Quando alcançamos o que fazer? Se
contentar com a satisfação momentânea ou buscar novos desafios que nos motivem
a viver?
Drama - 109 min - 2008
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