NOTA 9,0 Refilmagem de clássico infantil respeita a premissa original, mas adiciona cores, ritmo e espertas críticas aos perfis das crianças |
Um
mundo a parte muito colorido, onde há bastante diversão, novidades a cada canto
que se olhe e o melhor é que praticamente tudo é comestível e bem docinho. Para
completar, o anfitrião é uma figura excêntrica que usa roupas extravagantes e
parece não querer crescer. Se fosse algumas décadas atrás essa descrição
caberia perfeitamente para a propaganda de um programa da Xuxa. Também não
estamos falando do mundo encantado em que o clássico personagem Peter Pan vive.
Esse é o cenário com o qual o ator Gene Wilder conquistou milhões de crianças
no mundo todo na década de 1970 sob a batuta de Mel Stuart. Como infelizmente a
memória do público é curta, mas seu preconceito com filmes antigos é grande, o
jeito para apresentar este citado mundo paralelo a novas gerações seria uma
refilmagem, motivo que geralmente causa arrepios a cinéfilos mais
tradicionalistas, mas atiça a curiosidade de platéias mais jovens,
principalmente quando existem efeitos especiais em jogo. A ideia ganhou cores
mais fortes e chamativas, além de trucagens visuais benéficas para a história e
uma trama com mais elementos bizarros saídos diretamente da mente insana do
diretor Tim Burton comandando novamente Johnny Depp, o seu ator predileto. A
refilmagem de A Fantástica Fábrica de Chocolate, baseado no livro homônimo do britânico Road Dahl, é uma deliciosa
aventura com boas doses de humor que uniu mais uma vez dois dos maiores nomes
do cinema dos últimos tempos, aliás, podem chiar a vontade os mais
tradicionalistas, mas é inegável que a produção cai como uma luva ao estilo
cinematográfico cultuado pela dupla. Curiosamente, mesmo com uma legião de fãs
do original e muitos outros fanáticos pelos trabalhos do cineasta e do
protagonista, a readaptação de um clássico setentista para a era moderna não
agradou completamente. Fez muito dinheiro, mas em contrapartida somou uma grande
quantidade críticas negativas e provavelmente não esperadas e tal proporção. Todavia,
a premissa da obra original foi respeitada. A história readaptada pelo escritor
John August, que já assinou os roteiros de outros trabalhos do cineasta, nos
apresenta à Willy Wonka (Depp), o estranho dono de uma fábrica de doces que há
anos decidiu se esconder do mundo devido a problemas de seu passado, mas,
principalmente, porque percebeu que suas receitas secretas e mágicas estavam
sendo roubadas e produzidas por empresas concorrentes. De repente, de uma hora
para a outra, ele decide realizar um concurso para levar cinco crianças com um
acompanhante cada para conhecer o interior de seu mundo doce e de sonhos.
No
fundo a promoção é realizada com o objetivo de que Wonka possa encontrar entre
os felizardos alguém que mereça ser o herdeiro do império que construiu, já que
ele não tem filhos ou parentes próximos e a velhice já lhe apontara os
primeiros sinais de que chegará em breve. Dessa forma começa uma corrida contra
o tempo em todos os cantos do mundo para encontrar o bilhete dourado nas
embalagens de chocolate da companhia Wonka, o passaporte para uma incrível
experiência. Por ser um filme destinado ao público infantil, é óbvio que
existem lições de moral e elas são passadas através do elenco infantil, cada um
representando um estereótipo. Augustus (Philip Wiegratz) é gorducho, comilão e
superprotegido pela mãe; Violet (Annasophia Robb) é exatamente uma cópia da
mãe, prepotente e sempre querendo sair vencedora de tudo em que se mete; Veruca
(Julia Winter) sempre teve tudo que quis graças a uma família rica, mas isso a
transformou em uma menina arrogante e sem limites; Mike (Jordan Fry) é
acostumado a passar quase o dia todo na frente da televisão jogando videogame e
tentando superar seus próprios recordes no jogo, o que explica seu
comportamento agressivo e por vezes desligado; e, finalmente, Charlie (Freedie
Highmore) é o garoto de bom coração, humilde e que sabe respeitar e ajudar o
próximo. Em um time selecionado a dedo e com características tão óbvias, não é
preciso quebrar a cabeça para saber quem irá ser o escolhido pelo confeiteiro
para dar continuidade ao seu trabalho. Ser previsível é praticamente a
palavra-chave para uma produção infantil. Não se pode exigir demais de um
roteiro do tipo para não comprometer o entendimento e a diversão dos pequenos,
mas Burton tem o dom de transformar algo que podia ser uma bobagem em alguma
coisa grandiosa e que atende perfeitamente ao público de diversas faixas
etárias. Só mesmo sendo um crítico muito do cricri para detonar a obra, apesar
de certos pontos serem exagerados. O problema maior talvez fique por conta dos
funcionários da fábrica, os Umpas-Lumpas (todos interpretados pelo pequeno ator
Deep Roy). A explicação de como Wonka os encontrou é um tanto caricata e as
músicas que eles cantam ao longo da trama para pontuar os acontecimentos com as
crianças são bem editadas, coreografadas e inspiradas em músicas famosas, mas
as letras devem aborrecer aos adultos. Apesar disso eles são engraçadinhos e
agradam muita gente. Outros apontam o uso excessivo de efeitos especiais um
equívoco, pois quebram o aspecto artesanal do visual da produção, mas nada que
incomode muito até porque o cineasta prefere tudo o mais realista possível,
como em uma sequência em que cerca de quarenta esquilos atazanam uma das
crianças. Qualquer um iria preferir recorrer a tecnologia para reproduzir
várias vezes as imagens dos bichinhos e encher o cenário, mas estamos falando
do trabalho de um adepto assumido do estilo bizarro que preferiu a árdua tarefa
de lidar com dezenas de esquilos de verdade. Por outro lado, por exemplo,
adotou os efeitos de computação para transformar uma esquálida garota em uma
verdadeira bola de coloração arroxeada, evitando chacotas quanto a precariedade
de pintar o rosto da atriz e revesti-la com uma armação de espuma.
Após os
créditos iniciais que retratam o funcionamento de uma fábrica de doces de modo
bem modernizado ao som de uma canção um tanto sombria, somos apresentados a
família que reside em um casebre escuro e bem acabadinho. Lá vive a família de
Charlie de modo paupérrimo já que a única renda deles era a do pai do garoto
(Noah Taylor), que foi substituído no emprego por uma máquina (olha a
introdução moderninha fazendo sentido e provando que o diretor não dá ponto sem
nó). Durante cerca de meia hora somos apresentados rapidamente a rotina deste
clã e conhecemos as demais crianças felizardas, que só por suas apresentações
já fisgamos o que há de crítico em cada um dos perfis. Tem gente que procura
pêlo em ovo e diz que falta aprofundamento psicológico e emocional aos
personagens, mas o que há é o suficiente para a compreensão da gurizada,
lembrando que este é o público-alvo. O restante do filme é dedicado a dar boas
lições a cada um que conseguiu o bilhete dourado, mas não merece o grande
prêmio da excursão. Tudo é bem esquematizado, todos os atores mirins têm
chances de mostrar seu talento e o espectador viaja por um mundo maravilhoso
que inclui um rio de chocolate, chicletes com sabor de comida, funcionários
especialistas quando o assunto é quebrar nozes manualmente e até um elevador de
vidro que anda para os lados. Porém, é óbvio que o elemento que mais chama a
atenção é Depp com seu divertido e sarcástico Wonka. Acostumado a atuar sob
maquiagens e figurinos pesados, aqui o ator mais uma vez veste a fantasia
literalmente e constrói um tipo com diversas nuances, desde o patético até o
amedrontador, e que consegue só com o olhar transmitir toda a tristeza que
sente ao lembrar-se da convivência com o pai dentista (Christopher Lee) que,
ironicamente, o proibia de comer doces. Rumores dizem que o filme original não
agradou em nada ao autor do livro em que a história se baseia, assim houve um
pouco de dificuldades em fazer com que a viúva dele, Felicity Dahl, aprovasse
ceder os direitos autorais mais uma vez, mas ela acompanhou a produção de perto
e aceitou as mudanças feitas no roteiro, como alterações no perfil de Wonka
para que ele tivesse uma história de vida, uma origem e motivos que o levassem
a viver sozinho e a trabalhar com doces e também a inserção da sequência em que
o excêntrico confeiteiro constrói um gigantesco palácio de chocolate para um
nobre indiano que só queria saber de luxo e fama e não pensou que seu sonho uma
hora derreteria inevitavelmente. Enfim, o diretor mais uma vez deitou e rolou
em uma obra em que ele conseguiu fantasiar e se divertir a vontade aliando
inocência, sonhos, críticas, pesadelos e tudo o mais que ele sempre faz questão
de trabalhar em suas obras, tanto no texto quanto no visual. Evitando
comparações com a primeira versão, esta reinvenção por parte de Burton de um
dos maiores clássicos das sessões da tarde de todos os tempos funciona muito
bem do início ao fim e tem em cada fotograma a marca registrada do cineasta. Seu
estilo está impresso em cada detalhe dos cenários e figurinos que misturam as
citações do escritor Dahl com o estilo Burton de fazer cinema. A
Fantástica Fábrica de Chocolate emociona
e diverte tanto quanto sua versão original e tem fôlego para encantar as
próximas gerações. Para aqueles que até hoje cultuam o Wonka de bom coração do
simpático Wilder de décadas atrás e ainda não se arriscaram a ver a versão Depp
do doceiro, não perca mais tempo e se delicie com uma apetitosa obra que certamente
você irá querer rever outras vezes. Só uma ressalva: quem tem filhos ou costuma
interagir com crianças diariamente provavelmente irá reconhecer algumas delas
na tela, mas não se ofenda, é tudo uma crítica bem-humorada e um alerta a
respeito da educação que não se aprende na escola e sim dentro de casa.
Aventura - 116 min - 2005
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