NOTA 9,0 Martin Scorsese mergulha fundo na fantasia para homenagear os primórdios do cinema ao mesmo tempo em que experimenta inovações |
No início de 1896 um curto
filme intitulado A Chegada do Trem na Estação impactou quem o viu.
Em Paris, os irmãos Auguste e Louis Lumière, considerados por boa parte dos
historiadores como os criadores da arte cinematográfica, filmaram o veículo do
título em perspectiva lateral e isso causou na platéia a impressão de que os
vagões estavam realmente seguindo em direção a ela e invadiria a aconchegante
sala escura a qualquer momento. O resultado é que os desavisados espectadores
ficaram em pânico e uma grande confusão começou. Mais de um século se passou e
hoje o público deseja realmente assistir a um filme no qual possa ter a
sensação de que o imaginário invadiu a realidade, mas para tanto não basta
apenas a imaginação. Agora os efeitos 3D tratam de aproximar ao máximo os
espectadores dos elementos cinematográficos, o que em alguns casos pode
empobrecer a experiência de ir ao cinema ou até mesmo ver um filme em casa.
Todavia, o mercado atual pede tecnologia para gerar lucros e até um dos mais
renomados cineastas de vanguarda ainda em atividade aderiu ao sistema. A
Invenção de Hugo Cabret marca a estreia de Martin Scorsese no
gênero fantasia e também no mundo das inovações. Acostumado há anos a trabalhar
com temas fortes, realistas e principalmente o mundo dos gângsteres, Scorsese
aceitou realizar este trabalho para agradar a esposa e a filha de 12 anos que
lhe apresentou o livro homônimo de Brian Selznick. Já idoso, mas ainda com
muito pique e criatividade, o cineasta não fez simplesmente um filme para
entreter crianças, muito pelo contrário. Além de a história ser palatável para
adultos, Scorsese fez uma bela homenagem à própria sétima arte e a si mesmo de
certa forma, pois se o cinema é a arte que transforma sonhos em realidade,
faltava em seu currículo um trabalho literalmente fantasioso para dar o último
atestado de que ele sem dúvida é um dos maiores e melhores cineastas de todos
os tempos. Indicado a onze categorias do Oscar 2012, o longa venceu em cinco
merecidas categorias técnicas, mas a Academia de Cinema ficou devendo a
estatueta para o diretor, talvez porque ele já tenha uma em sua casa por Os
Infiltrados. Na comparação entre as duas produções digamos que o premiaram
na época errada acreditando que em 2007 seria a última chance de corrigir
injustiças com este profissional que ajudou a escrever a História do cinema e
até do próprio Oscar com clássicos como Táxi Driver e Touro
Indomável. Pesou também a concorrência com o francês O Artista que
coincidentemente também fala dos primórdios da atividade cinematográfica, mas
Scorsese vai além em sua empreitada e realizou praticamente uma declaração de
amor ao cinema como forma de enriquecimento cultural e emocional.
Esta obra atípica no currículo
de Scorsese é uma eficiente e encantadora mistura de drama, aventura, romance,
fantasia e até documentário, uma receita que funciona harmoniosamente graças a
um impecável trabalho de edição que praticamente une dois filmes em um só. O roteiro
de John Logan nos apresenta ao garoto Hugo Cabret (Asa Butterfield), um órfão
que vive, em meados da década de 1930, escondido entre os enormes relógios que
ficam em uma estação de trem de Paris (uma das várias citações do enredo aos
primórdios do cinema). Ele passa seu tempo colecionando diversas peças de
brinquedos para tentar consertar um autômato quebrado, uma espécie de robô
deixado pelo seu falecido pai (Jude Law), um relojoeiro, mas as consegue
roubando uma loja, o que lhe acarreta problemas com Gustave (Sasha Baron
Cohen), o inspetor da estação, que passa a persegui-lo constantemente. Certo
dia o dono do tal estabelecimento alvo de furtos, Georges (Ben Kingsley), rouba
um caderno de anotações do garoto, umas das poucas coisas que seu pai lhe
deixou, dando a entender que naqueles escritos existe algo de muito importante
e que há uma ligação com o comerciante. Este segredo nem a afilhada de Georges,
Isabelle (Chloë Moretz), sabe, mas agora esta duas crianças curiosas vão fazer
de tudo para desvendarem este mistério que pode ajudá-las a compreender melhor
o histórico de suas próprias famílias. Quem seria este homem que aparentemente
é um tanto rabugento, mas que ironicamente trabalha como vendedor de
brinquedos? Mais uma vez Scorsese usa a metalinguagem. Este senhor seria
ninguém menos que o cultuado cineasta Georges Méliès. Nunca ouviu falar dele?
Tudo bem, mas certamente você já deve ter visto em algum lugar uma de suas mais
famosas cenas: a de uma lua com rosto e expressões faciais, uma sequência
pertencente à produção Viagem à Lua, datada de 1902. Pelo menos um
século antes da invenção do 3D, Méliès já fazia uso de efeitos tridimensionais
através de técnicas oriundas do ilusionismo. Este visionário se apaixonou pelo
cinematógrafo criado pelos irmãos Lumière, estes que só captavam através do
revolucionário equipamento cenas banais do cotidiano, e resolveu juntar todas
as suas economias e até vender alguns bens para montar seu próprio estúdio de
cinema. Por amor a essa nova arte ele se desdobrava em várias funções dentro de
um mesmo projeto. Escrevia, dirigia, produzia, atuava e editava. Essa foi sua
rotina por muitos anos até que a Primeira Guerra Mundial chegou e acabou com a
magia. Os soldados que voltavam da guerrilha viram tantas coisas ruins nesse
período e a própria população sofreu tanto que a dura realidade tirou o brilho
e o encantamento de se entrar em uma sala escura e esquecer os problemas. Em
seguida, novos diretores surgiram cheios de criatividade e sabendo fazer bom
uso do advento das cores e do som. Assim, Méliès e sua obra foram esquecidos.
Ele foi considerado morto e seus filmes estragaram com a ação do tempo. Como
diz o pequeno Hugo em certo momento, “tudo tem seu propósito, quando não se tem
mais está quebrado”. O cineasta se sentiu inválido e preferiu se recolher em
sua pequena loja na estação de trem.
É interessante perceber que o
relógio é um dos elementos mais marcantes desta produção o que nos remete ao
tempo, este que foi impiedoso com Méliès. Em certo momento, Hugo diz à
Isabelle, em outras palavras, que por muito tempo achou que não tinha função
alguma no mundo até o dia que percebeu que assim como um relógio é formado por
diversas peças cada qual com uma tarefa específica para fazê-lo funcionar, o
mundo também necessita de muitas e diferentes pessoas, cada uma com propósitos
específicos para fazerem sua gigantesca engrenagem continuar funcionando. Scorsese
se aventurando em um terreno no qual jamais pisou ao longo de sua carreira e
experimentando as maravilhas que a tecnologia oferece ao cinema atualmente
parece querer “dar um perdido” nos ponteiros do relógio e continuar se mantendo
em evidência provando que seu talento e conhecimento ainda podem trazer muito
ao mundo. Por outro lado, a opção de revisitar os primeiros anos da sétima
arte, com direito a imagens reais e recriações dos bastidores de títulos de destaque
na filmografia de Méliès, é como se fosse uma carta de despedida, como se o
diretor soubesse que inevitavelmente mais cedo ou mais tarde sua carreira será
interrompida seja por vontade própria ou o desejo do tempo. Se encerrasse seus
trabalhos com A Invenção de Hugo Cabret, certamente o
diretor estaria deixando para a História do cinema um belo legado, uma obra
atemporal que dialoga com o passado e o presente e que será um importante
registro no futuro. Com uma parte plástica invejável, que substitui as cores e
tons escuros tão típicos do currículo de Scorsese por um colorido vibrante e
arrebatador, e uma premissa muito interessante, contudo é importante ressaltar
que talvez em um primeiro contato o espectador não encontre elementos
suficientes para apreciar esta obra. É certo que o enredo parece ser dividido
em dois blocos distintos no qual o primeiro exalta o cinema escapista e o
segundo ato apresenta esta arte como ferramenta documental, uma divisão que de
certa forma coloca o personagem-título como protagonista e depois coadjuvante
diante da sedução de poder conhecer um pouco mais sobre o início do cinema. Apesar
de existir essa divisão narrativa, quem estiver aberto a entrar por pelo menos
duas horas em um mundo de sonhos, esta é sem dúvida uma excelente dica. Vale a
pena conferir e tecer suas próprias opiniões, afinal caminhos a serem
analisados aqui não faltam e é difícil descrever, resumir, criticar ou elogiar
esta obra em algumas poucas linhas.
Vencedor do Oscar de efeitos visuais, fotografia, som, edição de som e direção de arte
Aventura - 126 min - 2011
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