Nota 10 Fantasia acerca de lenda dos bastidores de um clássico é uma bela homenagem ao cinema
Os vampiros são alguns dos personagens mais recorrentes da história cinematográfica. Desde os tempos do cinema mudo as temidas criaturas da noite conquistaram seu espaço sendo Nosferatu a obra do tipo mais marcante deste período. Datado do ano de 1922, este clássico do terror expressionista alemão foi o primeiro filme a ser originado do famoso livro "Drácula", assinado por Bram Stoker e que sete décadas mais tarde ganharia sua versão-coqueluche pelas mãos de Francis Ford Coppola. Neste espaço de tempo, centenas de filmes de vampiros surgiram e em cada um eles se apresentavam com alguma novidade. Sedutores, perversos, divertidos, depressivos, românticos e até versões femininas e infantis tivemos. É óbvio que tudo que é demais enjoa e a maioria das produções de vampirismo automaticamente são tachadas como trashs. Em meio a estagnação da imagem desse mito no final do século 20, o diretor E. Elias Merhige trouxe um sopro de originalidade curiosamente revisitando o citado clássico mudo de F. W. Murnau. O ator Max Schreck fez uma personificação tão assustadora de um vampiro naquela época, tanto no visual quanto no comportamento, que diversas de suas cenas permanecem até hoje vivas no imaginário coletivo. Sua imagem excêntrica e curiosa que impressionava a todos no set deu origem a lenda de que ele realmente era um mordedor de pescoços e é justamente esse o gancho trabalhado em A Sombra do Vampiro, um presente aos cinéfilos que encontram aqui subsídios para uma nostálgica, intrigante e ao mesmo tempo agradável viagem no tempo.
Terror, suspense, drama, filme de arte ou de humor negro? É até difícil classificar este trabalho único e criativo. Experimental seria a palavra mais adequada. Impedido de filmar a história do Conde Drácula tal qual no romance de Stoker, já que a viúva do escritor não cedeu os direitos da adaptação, Murnau (John Malkovich) fez algumas adaptações na história original, como batizar o personagem principal de Conde Orlok, e estava disposto a fazer de seu filme a obra mais autêntica do cinema. Para tanto ele toma uma decisão ousada e excêntrica: contrata um vampiro de verdade para ser o protagonista. A escolha também ajuda o diretor a arrancar atuações mais realistas do restante do elenco que imediatamente fica curioso e intrigado, pois ninguém conhece Schreck (Willem Dafoe) e estranham seu comportamento nos bastidores e em cena. Sempre caracterizado como o personagem, só querendo filmar a noite e apresentando certa agitação nas cenas em que há sangue mesmo de mentirinha, a explicação dada é que este intérprete tem um método rigoroso e metódico de trabalho e nem mesmo nas horas de folga deixa de viver sua criação. Para conseguir que esta sinistra figura convivesse entre os simples mortais sem causar problemas, foi fechado um acordo. Murnau lhe ofereceu o pescoço da mocinha da obra, Greta Schröder (Catherine McCormack), mas a recompensa viria apenas quando as filmagens fossem concluídas. Porém, conforme o tempo passa, fica insustentável segurar os instintos de Schreck e as coisas complicam quando o diretor de fotografia Wolfgang Müller (Ronan Vilbert) adoece e existe a desconfiança de que o ator estaria envolvido no caso.
Conhecendo os fatos reais que originaram esta história, não fica difícil para o espectador se entregar ao espírito do filme. O desenvolvimento da ideia fascinante de imaginar o que poderia ter acontecido durante a sinistra produção ficou a cargo do roteirista Steve Katz. Trabalhar com a metalinguagem não é uma tarefa fácil, assim como também é difícil se equilibrar entre o suspense e o humor, tomando o cuidado de não transformar a obra em um terror ou num pastelão. As piadas contidas aqui são involuntárias, é como se o espectador esboçasse um sorriso para disfarçar o próprio medo, principalmente porque o roteiro enfatiza bastante a estranheza do protagonista. Coube ao excelente Dafoe viver tal figura sob uma caprichada maquiagem que acentuava o aspecto estranho e bizarro do Schreck original. Deveríamos ter medo ou ódio desta criatura, mas podemos sentir até mesmo pena como na cena em que tece comentários tristes a respeito de sua condição de viver eternamente e dependente do sacrifício dos outros. Certos momentos revelam também seu lado inocente como uma criança deslumbrada com os equipamentos utilizados para as filmagens. Sua ingenuidade fica ainda mais latente ao vermos que ele não percebe que está sendo enrolado pelo diretor obcecado em fazer o projeto mais realista possível. Dessa forma, o Murnau de Malkovich mostra-se ainda mais monstruoso que sua própria descoberta, pois coloca toda a sua equipe em risco em nome de seu reconhecimento como profissional.
Entre cenas de bastidores e das filmagens do longa, inclusive algumas recriações de sequências do longa original homenageado, o clima de suspense fica no ar graças ao trabalho apurado das equipes técnicas que capricharam nos cenários, edição e, principalmente, na iluminação e fotografia, áreas que proporcionaram uma coloração em tons sépia para as cenas, o que confere uma aura nostálgica irresistível e imprimem um visual gótico. De quebra, o longa demonstra às novas gerações que não é preciso ter em cena litros de sangue jorrando ou corpos esquartejados para causar a sensação de medo. Do início ao fim é possível sentir algum tipo de calafrio, mas não chega ao ponto de causar pesadelos. Talvez esse seja o motivo do longa ter se tornado sucesso em um nicho de público específico. Os cinéfilos se divertem desbravando os mistérios acerca da famosa produção dos primórdios do cinema caçando referências sutis ao clássico e a própria época contemplada. Para quem desconhece a lenda cinematográfica e se irrita facilmente com produções de ritmo lento, esta não é uma opção das mais recomendadas. Mesmo assim, A Sombra do Vampiro é uma interessante produção que faz uma homenagem ao cinema e ressuscita com dignidade a imagem do vampiro em sua versão mais clássica.
Em uma época em que os vampiros caminham livremente pela luz do dia, lutam contra lobos e se entregam a paixões avassaladoras por humanos, é bom relembrar as raízes desses enigmáticos personagens em um trabalho que, guardada as devidas proporções, homenageia uma época em que o cinema era feito por curiosos e apaixonados por essa arte e não apenas visando lucros. Lembranças que ficaram num passado remoto, mas que de tempos em tempos são recriadas por alguns poucos entusiastas. Curiosidade: se você achou esta obra talhada para fanáticos por cinema alternativo, saiba que o produtor é ninguém menos que Nicolas Cage, o rei dos filmes-pipoca, atualmente mais conhecido como rei dos filmes-fracassos. Todavia, é louvável seu desprendimento e consciência. Muito provavelmente não se sentindo preparado para dar vida ao lendário Murnau e tampouco trabalhar a complexidade da composição do personagem vampiro, Cage foi generoso oferecendo os papeis a outros atores renomados e que já haviam provado não se esquivarem de desafios, um contraponto interessante ao próprio enredo que coloca Malkovich para defender um homem disposto a arriscar vidas em nome de seu narcisismo e obsessão.
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