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segunda-feira, 15 de novembro de 2021

A BOA MENTIRA


Nota 7 Drama de sudaneses recém-chegados aos EUA é retratado com realismo  e tom critico


O continente africano ao longo de seu desenvolvimento foi marcado por inúmeros conflitos por conta de preconceitos étnicos ou religiosos e questões políticas envolvendo disputas territoriais e exploração da escravidão, entre outras tantas razões. Desses eventos, sejam de pequeno ou grande porte, são poucos os que chegaram a conhecimento público com riqueza de detalhes. Os livros de História são pequenos para abordar tanto conteúdo, até porque em regra geral nos é ensinado apenas questões relacionados ao continente norte-americano e de alguns países europeus e asiáticos que foram ou ainda são considerados grandes potências. Ainda bem que temos o cinema para nos apresentar registros de passagens importantes da evolução (ou não) da civilização e consequentemente do mundo como um todo. A Boa Mentira traz o retrato de mais um triste e pouco conhecido capítulo vivido pelo povo africano, mais especificamente de um grupo de jovens sudaneses forçados a abandonar a sua pátria e se adaptar a toque de caixa à cultura e ao agitado e doentio cotidiano dos ianques. 

Em meados da década de 1980, um conflito por terras e riquezas levou uma tribo no Sudão a ser dizimada por militares e os sobreviventes foram obrigados a se aventurar pelo deserto em busca de um lugar seguro. Entre eles estão os irmãos de sangue Marmere (Arnold Oceng), Abital (Kuoth Wiehl) e Theo (Femi Oguns) e os irmãos de coração Jeremiah (Ger Duany) e Paul (Emmanuel Jal). Após muitos sofrimentos e privações da infância à juventude, incluindo ter que beber urina para não morrerem de sede, o grupo consegue chegar a um campo de refugiados no Quênia. Somente Theo não conseguiu chegar ao fim da travessia, pois se entregou aos guerrilheiros para salvar os demais. A sorte volta a sorrir para os jovens após mais de uma década de incertezas, quando mesmo após uma onda de xenofobia instaurada após o 11 de setembro de 2001 surge uma oportunidade de intercâmbio para os EUA onde seriam acolhidos por voluntários e contratados em pequenos comércios e fábricas. Todavia, o tal sonho americano revela-se frustrante desde o desembarque no aeroporto, o que explica o título.


Os rapazes são obrigados a se separar de Abital, que seria abrigada em uma casa de família em Boston, enquanto eles são encaminhados para o Kansas e são recebidos sem muito preparo por Carrie (Reese Witherspoon), a assistente social incumbida de inseri-los no mercado de trabalho. Inicialmente a moça mostra-se um pouco arrogante e distante, um comportamento atípico para uma profissional de sua área, mas a convivência com os sudaneses acaba abrandando seu coração. De imediato há um estranhamento de ambas as partes. A moça é independente, bem resolvida e não demonstra apreço pela rotina de dona de casa ou sonha em constituir família, o que é estranhíssimo para os refugiados acostumados ao trabalho doméstico desde cedo e a crescerem em famílias numerosas. Da parte dela vem a perplexidade ao perceber que coisas tão banais de seu dia-a-dia para eles são verdadeiras novidades como realizar uma simples ligação telefônica. Tudo que conheciam por modernidade era agregado a negativismos, tais como armas e bombas. Arranjar um emprego para eles também não é tarefa fácil. Após batalhar muito, Carrie consegue vagas, mas a adaptação de cada um é tortuosa. 

Paul tem a sorte de encontrar um trabalho no qual suas habilidades são seu diferencial, mas acaba se envolvendo com drogas incentivado pelos colegas. Jeremiah, que sempre foi muito religioso e caridoso, se revolta com certas situações de sua empresa, como jogar fora toneladas de comida ainda com prazo de validade que poderiam ser doadas. Já Mamere, que prestava auxílio aos médicos no acampamento de refugiados e sonha em estudar medicina, tem que conciliar uma jornada tripla de trabalhos e estudos. Em paralelo, os três lutam pelo direito de poderem viver junto com Abital, uma separação sem fundamentos plausíveis. A legislação que deveria proteger direitos dos imigrantes mostra-se rígida e desfavorável e apenas complica ainda mais a adaptação das pessoas em nova terra. A história destes irmãos não é muito diferente de outros tantos africanos seduzidos por propostas de uma vida melhor em solo norte-americano. Diante das dificuldades que enfrentavam em seu país de origem é fácil ludibriá-los. 


O longo prólogo que mostra as dificuldades dos irmãos desde a infância em seu país-natal é sem dúvida a melhor parte do roteiro escrito por Margaret Nagle. A triste realidade daquelas pessoas causa um incômodo sentimento de impotência, de não podermos fazer nada para ajudar. A fotografia em tons amarelados, que ressalta o clima árido do deserto que atravessam, ajuda a justificar suas degradações físicas. Além do trauma das lembranças da guerra, ainda sofrem com racionamento de comida, falta de água, doenças, mas ainda assim mostram-se confiantes de que um futuro melhor os aguarda. Ainda bem que nem tudo é tristeza no filme assinado pelo diretor Philippe Falardeau. Ele também aborda com certo humor e leveza a perda da inocência, o espanto e a curiosidade diante de um novo universo e o amadurecimento de seus protagonistas. Aliás, é preciso deixar claro que os personagens sudaneses são os principais, com seus perfis introspectivos, gestos contidos e olhares atentos e comunicativos, a forma que encontram para se expressar. Embora tenha como chamariz Witherspoon, em A Boa Mentira ela é coadjuvante e não tem um desempenho espetacular, apenas cumpre seu papel corretamente apresentando a transformação positiva do caráter de Carrie também a partir do contato com uma cultura diferente da sua. 

Drama - 110 min - 2014

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