NOTA 8,0 À primeira vista confuso e monótomo, longa exige reflexão e desafia a inteligência do espectador, mas seu final compensa o esforço |
Não entendi nada. Certamente esse
é um dos comentários mais comuns feitos para o suspense A Passagem, mais uma
daquelas produções que jogam peças ao longo da narrativa para que o espectador
tente montar o quebra-cabeça proposto, só que neste caso quem assiste pode
respirar aliviado ao final, pois tudo é explicado. O problema é que aqueles que
se entediarem com a narrativa certamente vão dispersar a atenção e perder
detalhes importantes, assim a conclusão continuará sem sentido inevitavelmente.
Apesar de colher elogios de críticos amadores, é óbvio que não é um filme
popular, é preciso estar preparado para encará-lo o que lhe confere certa aura
de “obra de nicho”. De fato, o passar dos anos comprova o rótulo já que se
tornou um título de procura específica ou apenas curiosos aficionados pelo trio
de atores principais devem querer assisti-lo, estes que provavelmente vão se
perguntar porque seus ídolos se meteram nesse projeto. Escrito por David
Benioff, a trama fala sobre o mundo de paranoias em que um psiquiatra mergulha
quando se torna muito próximo de um de seus pacientes. Sam Foster (Ewan
McGregor) foi chamado para substituir por duas semanas uma colega e assim
conheceu Henry Lethem (Ryan Gosling), um jovem com graves distúrbios mentais. A
mudança repentina de profissional não agradou o rapaz que já tinha a sensação
de ser um rejeitado e se até sua médica não queria mais lhe dar ouvidos... De
qualquer forma, não demora muito para ele se sentir a vontade e revelar ao
doutor que pretende cometer suicídio em três dias, assim Foster começa a
investigar o passado do paciente para compreender as razões de seu desespero e
impedir uma tragédia, no entanto, conforme se aprofunda no assunto ele também
acaba se envolvendo com situações que o fazem perder a noção da realidade.
Falar que vai se matar qualquer um pode afirmar em momentos de depressão ou
angústia, mas o que intriga o psiquiatra neste caso é uma coincidência. Henry é
estudante de artes plásticas e tem sua morte meticulosamente planejada para o
dia em que completará 21 anos, a mesma atitude que tomou um pintor que ele
admira quando completou essa idade. Lila (Naomi Watts), namorada de Sam e sua
antiga paciente, mas que ainda sofre de depressão, acredita que compreende as
emoções do jovem suicida e oferece sua ajuda. Curiosamente ela chama
constantemente o companheiro de Henry, por que isso? Como o tal paciente
consegue prever acontecimentos futuros, inclusive pensamentos de seu
psiquiatra? Por que o rapaz insiste que seu médico mantém contato com o seu
pai, embora este já tivesse falecido? A mãe do paciente também já teria
morrido, mas como Sam conversou com ela pessoalmente? Dúvidas, dúvidas e mais
dúvidas que vão se acumulando e, como já dito, um desvio de atenção e tudo se
embola.
O diretor Marc Foster, acumulando
elogios ao denso A Última Ceia e ao
belo e emocionante Em Busca da Terra do
Nunca, não conseguiu a mesma projeção com este trabalho, uma proposta
completamente diferente ao que ele havia apresentado até então. Todavia, ele é
habilidoso ao conseguir empurrar o espectador para dentro de uma narrativa
estranhíssima, o instigando a colecionar pistas, ainda mais pelo fato dos
personagens não serem engessados a estereótipos, todos deixam dúvidas no ar. O
diretor originalmente seria David Fincher, de Clube da Luta, e certamente o filme seria diferente, talvez para
melhor ou para pior. Nas mãos de Foster, há quem acuse que o filme preocupa-se
demais com o visual do que propriamente com o enredo. Na realidade existe um
casamento perfeito entre imagem e texto. Se a história já é perturbadora, a
confecção das cenas não fica por baixo. Cores, sons, ângulos de câmera, luzes,
edição, detalhes dos cenários, trilha sonora, tudo que está na tela ajuda a
compor uma atmosfera angustiante e de delírio. É nesta última palavra que pode
estar o segredo do filme. Seriam todos os pontos desconexos da história apenas
fantasias? Mas de quem? Henry ou Sam? Ou tudo realmente terá uma explicação
coerente? Foster oferece uma conclusão plausível nos últimos cinco minutos, mas
talvez ela não satisfaça a maior parte dos espectadores. Compreendê-la não é
difícil, porém, exige reflexão posterior. Provavelmente a primeira frase deste
texto será a primeira coisa que virá à cabeça da maioria, mas não entender nada
de imediato de forma alguma desmerecerá sua inteligência, principalmente se
tiver a sensação de que algo escapou aos seus olhos ou a sensibilidade
necessária para constatar que todos vivem diariamente momentos em que podem
vivenciar coisas sem sentido algum. Sim, é no sonho, no delírio, na imaginação
que está a resposta de tudo, mas isso não diminui o interesse por este
suspense. Quando chegamos ao fim temos vontade de reiniciar o filme para
apreciar com mais atenção e ligar os pontos. Aliás, ao longo de toda a
narrativa temos evidências de que é a mente de um dos personagens que está
comandando a história, basta ficar atento na transição das cenas. Elementos
cênicos marcam essas mudanças como o enquadramento de uma imagem que pode virar
uma fotografia na cena seguinte e em outro cenário qualquer ou o porta-retratos
cuja foto ganha destaque e de repente movimento para abrir uma nova sequência.
Personagens podem abrir uma porta e entrar na próxima cena ou um jogo de
câmeras fazer um simples pilar demarcar uma mudança de cenários. Tudo isso é
feito de forma tão sutil e com a narrativa tão fluida que podemos nem perceber
essas mudanças até porque, como de costume, nosso foco de atenção é nos
personagens que agem naturalmente. É um pouco difícil explicar esses efeitos,
só vendo para entender e poder elogiar.
Quem leu o texto até aqui sem
estar munido de informações adicionais sobre o filme certamente está na dúvida.
Afinal de contas ele é bom ou ruim? As duas avaliações são corretas, depende do
ponto de vista e da paciência de quem vê. Se a paranoia lhe angustiar
rapidamente e você desistir de continuar assistindo, a avaliação negativa é
iminente não sobrando elogios nem para os atores e tampouco para a parte
técnica, tudo será espantosamente sem sentido. Agora, quem fizer pé firme e
chegar até os créditos finais poderá se surpreender positivamente e ver que
tudo se encaixa, inclusive o que parecia firulas visuais. Para chegar a tanto,
não se intimide em assistir mais uma, duas ou quantas vezes for necessário, o
objetivo de A Passagem realmente é instigar o espectador a valorizar
detalhes, levá-lo a reflexão, tomar contato com uma forma diferente de fazer
cinema. Vendo por esse prisma, o filme seria uma experiência e tanto para o
público em geral tão acostumado a respostas objetivas e previsíveis. Que tal
colocar o cérebro para funcionar um pouco? Na teoria a ideia é ótima, mas na
prática não é tão fácil. Não se pode cobrar a mesma interpretação de um
pré-adolescente, de um jovem de nível de escolaridade relevante ou de uma
pessoa madura com pouca instrução. Cada um tem sua forma de analisar o filme de
acordo com suas experiências de vida, até mesmo levando em consideração sua cultura
cinematográfica. De qualquer forma, obras como esta nos levam a perceber que a
reflexão é necessária, até para os atos mais corriqueiros do nosso dia-a-dia. O
imediatismo é um vilão e tanto. Rotular esta produção com todos os adjetivos
negativos possíveis conferindo dez ou quinze minutos dela é muito fácil, mas
essa pressa pode levar muitas pessoas a deixarem de assistir um dos filmes mais
inteligentes e bem realizados dos últimos tempos. É uma pena que seu ritmo
arrastado e ausência de tiros, correrias e explosões não o elevem ao patamar de
Matrix, por exemplo, até hoje
considerado um marco cinematográfico. É certo que o filme de Foster não tinha
bala na agulha para chegar a tanto, mas sua mirrada projeção quando lançado e
praticamente ostracismo hoje em dia não fazem jus a suas qualidades. Como mesmo
depois de assistir e ler esta crítica podem ficar dúvidas, é irresistível
contar como tudo acaba, até como incentivo para aqueles que detestaram ou que
elogiaram a obra só para fazerem tipo reverem e avaliarem melhor. A conclusão é
bastante simples. No início temos um acidente de carro no qual Henry foi
arremessado para fora do veículo, mas seus pais e namorada faleceram. Muito
ferido, o jovem começou a ter alucinações à beira da morte, uma espécie de
mecanismo de defesa onde fantasia e realidade se confundem. Com o peso da culpa
que estava sentindo, em sonho ele planejava seu suicídio e até “criou”
personagens para Sam e Lila que estavam entre as pessoas que foram lhe prestar
socorro, quando na realidade os dois se conheceram naquele exato momento. Isso
explica o porquê das ações de todo o filme serem desconexas e até se repetirem
afinal de contas para a imaginação não há limites ou lógica a serem seguidos.
Suspense - 98 min - 2005
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