NOTA 8,5 Prática do aborto é discutida a partir dos atos de senhora de idade que só queria fazer o bem, mas acabou taxada como criminosa |
O aborto é um dos temas
mais polêmicos que o mundo enfrenta já há muitos séculos. Moral, religião,
família, honra, criminalidade, enfim são vários os aspectos em que uma gravidez
indesejada pode interferir e até hoje o assunto de interromper propositalmente
uma gestação gera discussões, sendo crimes gravíssimos em alguns países
enquanto outros optaram por um relaxamento das leis para ao menos permitir tal
ato no caso de uma criança concebida através de um ato sexual criminoso.
Todavia, parece que esse problema jamais terá uma solução definitiva, mas podem
vir a ser atenuado graças a trabalhos como O Segredo de Vera Drake que trazem
uma visão mais intimista e detalhista do dilema. Embora a trama se passe
durante a década de 1950, período pós-guerra ainda marcado por mazelas e
conservadorismo, o conteúdo exposto, além de nos proporcionar uma visão dos
costumes da época, ainda suscita reflexões. A personagem do título é interpretada
brilhantemente por Imelda Staunton. Vera Drake é uma gentil senhora que vive em
um bairro operário de Londres ao lado do marido Stanley (Philip Davis) e seus
filhos já adultos, o extrovertido Sid (Daniel Mays) e a tímida Ethel (Alex
Kelly). Apesar de não viverem de luxos e contarem moedas para sobreviverem, o
clã vive em harmonia e não se nega a ajudar os necessitados. Vera é faxineira
em casas de pessoas de posses, seu marido é mecânico, o filho trabalha numa
alfaiataria e a filha testa lâmpadas e dedica seu tempo livre ao tricô,
caracterizando a típica família de classe média baixa que sabe viver com o que
tem e não sonha alto. Porém, aos poucos, vamos descobrindo que a solidariedade
de Vera chega a limites extremos. Sem receber dinheiro algum, há vinte anos ela
sai escondida de casa para ajudar moças grávidas que não poderiam criar seus
filhos realizando abortos caseiros. Como se fosse uma enfermeira especializada,
ela recebe com todo carinho e atenção as mulheres que lhe pedem socorro através
de Lily (Ruth Sheen), uma espécie de contato secreto que agenda os encontros, e
com sua voz doce e calma procura tranquilizá-las enquanto prepara o material
para o procedimento. Utilizando uma bomba de sucção, uma mistura de
desinfetante, sabonete e água quente era introduzida dentro do corpo da grávida
e dentro de dois dias o embrião seria expelido. A benfeitora não gostava de
usar o termo aborto, pois para ela tal situação era apenas mais uma forma de
prestar caridade, no caso ajudando jovens carentes, esposas que deram um mau
passo e mulheres que já eram mães e não podiam arcar com as despesas de mais um
filho. A prática só foi legalizada na Inglaterra cerca de vinte anos depois
deste episódio, ato provavelmente impulsionado pelos diversos casos de pessoas
que sofreram consequências graves devido a sua ingenuidade e falta de discernimento.
Com direção e roteiro do
britânico Mike Leigh, de Segredos e
Mentiras, e baseado em fatos reais, este trabalho vai se revelando aos
poucos. Primeiramente nos familiarizamos com o universo em que vive a
protagonista e ficamos conhecendo sua posição perante a sociedade, uma forma de
plantar dúvidas na cabeça do espectador sobre os motivos que levaram uma
senhora tão simpática e respeitada a praticar atos ilegais. O diretor teve todo
o cuidado de mostrar a personagem totalmente a vontade na sua primeira cena em
ação afinal isso já faz parte de seu cotidiano tal qual lavar a louça ou varrer
a casa. As sequências que mostram os procedimentos abortivos são realizadas com
muita naturalidade como se fosse um exame de rotina de forma a não chocar
negativamente o espectador, porém, sem deixar de mexer com suas emoções. Na
mesma época os hospitais já estavam autorizados a realizar abortos, obviamente
mediante a bons pagamentos em dinheiro, mas até as mulheres mais ricas
preferiam a clandestinidade como forma de preservar suas honras e a de suas
famílias. A vergonha de ser apontada na rua como uma devassa para elas
representaria um sofrimento muito maior que qualquer dor que poderiam sentir ao
introduzirem algo estranho em suas entranhas. O longa não vai a fundo nessa
questão, embora complicações e mortes devessem ser corriqueiras mesmo em
ambiente hospitalar, mas a sociedade e as autoridades tinham muito mais poder e
facilidade para acusar as minorias, como no caso de Vera que teve o azar de
atender Pamela (Liz White), uma jovem que acabou passando mal após o
procedimento, foi levada a um hospital e o caso chegou aos ouvidos da polícia e
consequentemente ao conhecimento da família da idosa. Procurando não manchar a
reputação de desconhecidas Vera acabou arruinando sua própria imagem. Aliás, é
muito curioso que fora a protagonista, nenhum dos atores embarcou no projeto já
sabendo da temática. Tudo foi revelado ao elenco (excluindo obviamente as moças
que ela já havia atendido antes) no mesmo instante em que a senhora foi
desmascarada e todos os atores foram proibidos de falar algo sobre a produção
até mesmo para os familiares. Missão impossível? Não quando um diretor
respeitável está segurando as rédeas. Trabalhar com o conceituado Leigh é o
sonho de muitos atores, portanto não é de se estranhar que a turma tenha
aceitado trabalhar em um filme sem roteiro pré-escrito. Para alcançar o máximo
de realismo o cineasta decidiu redigir o texto conforme as filmagens avançavam
e as reações do elenco, proposta arriscada, mas que deu tão certo que no final
das contas deu muito mais trabalho transcrever o longa para atender as
exigências das premiações que necessitavam do roteiro por escrito para
inscrevê-lo. A veterana Imelda provavelmente pensava que o filme terminaria com
a revelação de seu segredo, mas sequer desconfiava que sua personagem ainda
seria presa e levada a julgamento. A cena em que a polícia bate a sua porta é
tão perfeita que é difícil imaginar que os diálogos foram improvisados e
interpretados ainda sob a reação de todos quanto a surpresa de que a narrativa
ainda teria desdobramentos sérios. Conhecendo o tal segredo, é justamente
aguardar a reação dos demais personagens a grande expectativa do longa.
Apesar do resultado
narrativo e estético ser dos melhores e seguindo o estilo europeu de se fazer
cinema, mais lento e preocupado em contar uma boa história através de
personagens envolventes e de fácil identificação, a produção foi sofrida. Com
orçamento apertado, o cronograma perdeu uma semana de filmagens, grandes estrelas
não foram contratas (Imelda só se tornou famosa após este trabalho e o
oscarizado Jim Broadbent faz apenas uma ponta creditada como o juiz que
determinará o destino da protagonista) e até nota-se a ausência de trilha
sonora, sendo que os personagens é que cantarolam vez ou outra para quebrar um
pouco o silêncio. Todavia, mais importante que o dinheiro é a criatividade e a
sensibilidade de Leigh para levar adiante uma história alicerçada sob uma
temática tão arriscada. Desde a concepção da ideia, estava claro que o filme
não seria um avassalador sucesso de público, mas com a acolhida em massa da
crítica e das premiações (Oscar, Globo de Ouro, Bafta, Festival de Veneza entre
outros) o longa acabou tendo um rendimento satisfatório e conseguiu plantar na cabeça
e no coração de quem assistiu a sementinha para suscitar a discussão a respeito
dos vários aspectos que envolvem o aborto. Sem levantar bandeira sobre a
legalização do ato, a exploração de um caso ocorrido há décadas atrás trata de
revelar o quanto a sociedade em geral é hipócrita. E quantas pessoas ainda
hoje, inclusive no Brasil, realizam procedimentos ilegais justamente por não se
sentirem amparadas pelas leis, mesmo quando contestam serem obrigadas a dar a
luz a uma criança gerada por um ato de violência? E quantas almas boas como
Vera Drake ainda podem ser apontadas por aí como carniceiras? Mas será que é só
por caridade mesmo que ela realiza esses serviços? O passado dela não é
revelado. A única coisa que fica entendida é que se casou precocemente, talvez
justamente por uma gravidez não planejada e que mudou o rumo de sua vida, mas o
cineasta evita explorar a história de Vera pelo viés psicológico. Simplesmente
mostra com total intimidade sua rotina, repetindo várias vezes a realização de
abortos para ratificar a temática pesada, mas jamais apresenta a protagonista
como um anjo de candura ou alguém com más intenções. Vera simplesmente é uma
mulher comum que errou procurando fazer o bem, mas o espectador não se sente
confortável em julgá-la. Embora seus procedimentos caseiros choquem se pararmos
para pensar que de forma muito tranquila ela estava exterminando uma vida, não
conseguimos enxergá-la com maus olhos porque realmente ela nos convence de que
inocentemente acreditava estar fazendo o melhor para as mulheres que a
procuravam em um momento de angústia, tanto que torcemos a seu favor durante o
julgamento, diga-se de passagem, cenas de pura emoção e nas quais literalmente
Imelda brilha com seus olhos ligeiramente claros e marejados de lágrimas a cada
nova evidência revelada comprovando a ilegalidade de seus atos. Com muita
seriedade, O Segredo de Vera Drake faz uma excelente exposição de um tema
ainda envolto em muita névoa e é certo que os conceitos defendidos por cada
espectador a esse respeito devem influenciar diretamente na avaliação desta
obra. Será que é por isso que ela acabou não se tornando um daqueles pequenos
filmes premiados cuja fama enfrenta bravamente o passar dos anos? Mexer em
feridas dói, não é mesmo?
Drama - 125 min - 2004
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