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segunda-feira, 27 de março de 2017

CASA DE AREIA E NÉVOA

NOTA 10,0

Drama sobre duas pessoas
desconhecidas que disputam a
posse de uma casa surpreende
com rumos inesperáveis 
A obsessão pelo sonho americano também pode levar ao pesadelo. Essa é a grande mensagem de Casa de Areia e Névoa e seus protagonistas vivem de maneiras diferentes estes momentos. O conceito de que os EUA é a terra das oportunidades surgiu após a Segunda Guerra Mundial quando os ianques passaram a cultivar a imagem de grande potência. Assim muitas pessoas partiram para lá sonhando com melhores condições de vida, mas na realidade as coisas não são tão fáceis como mostra o longa de estreia do diretor Vadim Perelman. Na verdade a mensagem não é restrita ao sonho americano, podendo ser aplicada em várias situações do cotidiano. Quantas vezes você já não brigou por motivos tolos? Às vezes o que é uma bobagem para os outros para você é de suma importância naquele momento e vice-versa. Cada cabeça é uma sentença e a vida é feita de conflitos que precisamos superar para nos tornar pessoas melhores, mas em alguns casos as coisas são complicadas. Já diz o ditado quando dois não querem dois não brigam, porém, quando ambas as partes estão dispostas a duelar... O longa poderia ser facilmente resumido como a história de duas pessoas que disputam um imóvel, cada qual com suas justificativas e ideais a defender, uma briga que revela a falta de limites e o egoísmo do ser humano quando movido pelo individualismo, mas o que fazer quando ambos os lados tem razões convincentes? A premissa simplória na realidade se transforma em um angustiante e envolvente drama pelas mãos do roteirista Shawn Lawrence Otto que adaptou em parceria com o próprio Perelman o best-seller homônimo de Andre Dubus III, este que já havia recebido praticamente uma centena de propostas para vender os direitos de sua obra para o cinema. Curiosamente fechou com um estreante que surpreendeu ao realizar uma obra madura e que é um verdadeiro soco no estômago. Kathy Nicolo (Jennifer Connelly) é uma mulher que tenta se livrar do vício do álcool, mas sua depressão é um grande empecilho. Abandonada pelo marido, há meses ela se desligou do mundo e não abria nem mesmo suas correspondências, assim não era de seu conhecimento o fato de que impostos atrasados de sua residência estavam sendo cobrados. Ela só descobre que está para ser despejada quando a polícia já está batendo a sua porta reivindicando sua saída. Na realidade, os impostos eram indevidos por serem tributações exclusivas para comércios, mas como ela não recorreu a casa que herdou dos pais já havia sido levada à leilão pela prefeitura. Sem dinheiro e para onde ir a situação da jovem acaba comovendo Lester Burdon (Ron Eldard), policial que ironicamente lhe comunicou sobre o despejo. Ele então tenta ajudá-la a sobreviver em um abrigo provisório e rever o processo na justiça, mas a convivência acaba os aproximando além de uma pura amizade, mesmo ele sendo casado e com filhos pequenos.

Paralelamente as cenas que mostram o sofrimento de Kathy também ficamos conhecendo a contraparte do caso da venda do imóvel. Massoud Amir Behrani (Ben Kingsley) é um ex-coronel da Força Aérea Iraquiana que foi expulso de seu país natal por conflitos políticos e partiu para os EUA com o objetivo de manter um padrão de vida semelhante para sua esposa Nadi (Shohreh Aghdashloo) e o filho adolescente Ismael (Jonathan Ahdout), mas as coisas não são tão fáceis como parecia, ainda mais para um imigrante de um país que parece viver um eterno conflito com os ianques.  Sua antiga patente não significa nada em solo americano e por isso ele se divide entre dois empregos comuns. De dia é um pavimentador de estradas e a noite é caixa de uma loja de conveniências. Vivendo de aparências, inclusive para conseguir um bom casamento para a filha mais velha, Behrani tem a grande chance de recuperar seu padrão de vida e finalmente se sentir respeitado em seu novo país quando vê no jornal o anúncio de uma confortável e tradicional casa perto da praia sendo leiloada a um preço muito menor que o mercado ofereceria, justamente a residência de Kathy. Ele junta todas as suas economias e realiza a compra, já prevendo fazer algumas melhorias nela para futuramente vendê-la por um preço até quatro vezes maior que o que desembolsou, assim finalmente chegando ao patamar de vida que almejava. Só o fato de morar nela nesse momento já lhe traria respeito diante da sociedade que ele julgava lhe olhar como um estranho ou alguém inferior. Enquanto isso, Kathy está vivendo dentro de seu velho carro e com a ajuda de Lester e da advogada Connie Walsh (Frances Fisher) consegue provas de que a prefeitura errou ao efetuar cobranças indevidas, mas só teria seu imóvel de volta caso o atual morador aceitasse revendê-la pelo mesmo preço que a adquiriu no leilão. Então começa um intenso conflito psicológico e emocional entre as partes que leva a consequências inacreditáveis. Ela quer sua casa de volta por questão de justiça e por ser o único bem material de valor que teria para seguir sua vida já tão desestruturada. Já ele quer ficar com o imóvel por orgulho e por também ver a residência como sua única fonte de lucro. Embora siga um rito relativamente lento, Perelman consegue envolver totalmente o espectador com uma história sem maniqueísmos. Não existe lado do bem ou do mal, mocinho ou vilão. Os conflitos sempre possuem ao menos dois lados a serem analisados, cada qual com suas justificativas, algumas plausíveis e outras sem razão, mas fazer qualquer uma das partes compreenderem seus equívocos na questão não é nada fácil. Ceder então...

Entre objetivos reais como a areia que pode ser tocada ou emotivos como a névoa que pode transmitir a sensação de vazio, os dois personagens estão no mesmo barco de certa forma, mas a realidade vivida por Kathy pode parecer mais dura. Sem dinheiro, emprego, família e, o principal, objetivos de vida, seu cotidiano é mais fácil de tocar o espectador, mas também é possível compreender a insatisfação de Behrani. Apesar de ter a companhia e o carinho da esposa e do filho e da possibilidade de ter suas economias de volta em troca da casa, suas chances de voltar a ter um padrão de vida semelhante ao atual são nulas e consequentemente ele seria mais uma vez o imigrante que veio para pegar o emprego de um americano e que deveria abaixar a cabeça para tudo e para todos. Dessa forma, a cada nova cena temos uma surpresa. Ora estamos do lado de um personagem, ora do outro, mas curiosamente não conseguimos sentir raiva de nenhum deles, no máximo um certo incômodo vez ou outra devido a certas atitudes que tomam. Nem mesmo as várias vezes que Kathy intercepta o caminho de Behrani e seus familiares conseguem transformá-la numa chata, pois suas motivações são críveis e uma forma de demonstrar rebeldia contra injustiças, desejo provavelmente inerente a população mundial. Com um conflito de alcance universal, Casa de Areia e Névoa é uma daquelas jóias raras que concorrem a muitos prêmios, mas o tempo infelizmente procura apagar. Olhando as listas de premiações da época, praticamente o longa é onipresente em todas elas, mas é curioso que não foi uma produção que causou furor. Contudo, além de um excelente trabalho de direção e um roteiro complexo, mas perfeitamente apreciável pelos mais variados tipos de públicos (desde que preparados para fortes emoções), o longa obviamente merece destaque por seu elenco. Connelly e Kingsley protagonizam verdadeiros duelos de titãs. Ambos oscarizados em outras ocasiões, os dois brigam em cena de igual para igual e é difícil dizer qual o melhor momento de cada um. Todas as cenas deles são perfeitas. O eterno Gandhi já não tinha mais que provar que tem talento, mas para a sua parceira certamente este trabalho foi essencial para comprovar que não é apenas um rostinho bonito. Os coadjuvantes também não estão aqui simplesmente para encher linguiça. Conforme a narrativa encaminha-se para seu final, Lester, Nadi e Ismael têm participações essenciais para os desfechos dos protagonistas. Com um visual melancólico que combina com a proposta do texto, principalmente nas cenas noturnas com a casa envolta em névoa, este trabalho é perfeito para quem gosta de filmes que realmente tenham conteúdo, daqueles que não fogem de sua memória facilmente. Mesmo com um final extremamente amargo, é difícil não ficar com um gostinho de quero mais. Palmas para Perelman que realizou uma obra que em resumo pode parecer simples, mas a forma como é conduzida vale por muitos filmes tamanha sua perspicácia em condensar em cerca de duas horas tantos acontecimentos e emoções, deixando o drama prevalecer, mas sempre com um leve suspense no ar que deixa o espectador na curiosidade de saber qual será o desfecho de um conflito aparentemente a toa, mas visto com olhar mais intimista difícil de julgar. 

Drama - 126 min - 2003

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