NOTA 8,5 Pixar consegue humanizar os carros em trama que escamoteia crítica ao progresso acelerado, em sua essência implacável e egoísta |
No mundo do cinema tudo é
possível e quando se trata do campo das animações o céu é o limite, tanto que
qualquer objeto pode ganhar vida e ser dotado de personalidade e sentimentos
tal qual um ser humano comum. É justamente a humanização dos automóveis o
grande trunfo de Carros, longa animado que literalmente dá vida a uma das
maiores paixões do homem. A Pixar já cultivava a tradição de ter suas produções
protagonizadas por objetos, animais e até monstrinhos, sendo Os Incríveis até a única animação do
estúdio em que os humanos não ficavam em segundo plano, porém, no longa em
destaque a empresa radicalizou e venceu o desafio de criar um universo
exclusivamente habitado por seres de quatro rodas, automóveis das mais diversas
marcas e estilos. Mais de 40 mil modelos de possantes foram testados até encontrar os ideais
para compor o elenco do filme, exemplares que pudessem remeter a veículos reais
e famosos, mais um chamariz para o público se divertir procurando referências, além
das tradicionais citações a filmes de sucesso que podem ser compreendidas
melhor pelos adultos, mas nada que atrapalhe a diversão da garotada. A trama
gira em torno de Relâmpago
McQueen, um veículo de corridas muito ambicioso e que deseja se tornar o
primeiro estreante a vencer a Copa Pistão, mas a fama lhe sobe no motor e ele
acredita que pode fazer tudo sozinho sem a necessidade de uma equipe de apoio.
A arrogância acaba lhe custando o seu sonho. Na última disputa da temporada os
seus dois pneus traseiros estouram e assim os principais adversários, o ídolo
conhecido como O Rei e o traiçoeiro Chick Hicks, cruzam a linha de chegada
juntos, o que leva a uma corrida extra na Califórnia para que aconteça o
desempate. McQueen deseja ir até o local ainda com esperanças de que o jogo
ficasse favorável para o seu lado e pede ajuda ao caminhão Mack. Ele deseja
chegar antes dos outros competidores e insiste para que a viagem não tenha interrupções.
O problema é que Mack acaba dormindo durante o trajeto, o que faz com que a
caçamba se abra e seu amigo que também estava dormindo seja largado em plena
estrada. Ao acordar, o corredor se vê sozinho e chega à pequena Radiator
Springs, uma cidade do interior pouco movimentada onde ninguém nunca ouviu
falar nada de sua fama ou no tal campeonato do qual ele participa. Por ter cometido
uma grave infração de trânsito e destruído a principal rua da local, o esnobe
carro é obrigado a asfaltá-la novamente. Sem poder ir embora, aos poucos ele
faz amizade com os habitantes, como o divertido Mate e a inteligente Sally, e
aprende importantes lições de vida, como o fato de que ninguém pode viver sem
companhia e o dever de respeitar os mais velhos.
Na época comemorando duas décadas de atividade, a Pixar, acostumada a
receber elogios rasgados e polpudas bilheterias logo nos primeiros dias de
lançamento de seus trabalhos, acabou levando um susto com a fria recepção que o
longa recebeu em solo americano, mas a situação logo foi revertida a favor da
empresa. Todavia, apesar de todos os elogios e prêmios que a obra recebeu posteriormente,
ainda há quem nunca a tenha visto, principalmente garotas, acreditando que não
passa de uma história batida sobre corridas automobilísticas, mas este projeto
pessoal do diretor John Lasseter, assumindo a direção de uma animação após quase
uma década de hiato (sua atividade principal é como executivo da Pixar), vai
além das expectativas apresentando uma história com traços humanos, mas
adaptada e ironizando as situações e vocabulários típicos do universo dos
veículos. A abertura empolgante e eficiente, com música agitada e uma edição de
cenas acelerada, apresenta a visão panorâmica de um estádio onde diversos
carros estão disputando uma corrida e rapidamente ficamos conhecendo o
protagonista da trama e seus rivais, deixando estabelecido o conflito sem dar
muitas voltas. O início é
bem o oposto do que vem a ser a temporada de McQueen em Radiator Springs. A adrenalina
é substituída pela melancolia (no bom sentido), assim o longa assume um ritmo
de narrativa mais clássico, priorizando inclusive as belas paisagens que
reconstituem com perfeição as estradas poeirentas e os rochedos do oeste
americano. O clima bem interiorano é propício para uma história que deseja
transmitir boas lições de vida. Apesar da Disney ainda na época apenas tratar
da distribuição e promoção das animações da Pixar, não tem como dizer que a
empresa não influenciou na produção. O enredo edificante focando a superação de
problemas e os personagens carismáticos e divertidos já são tradições do
estúdio do Mickey Mouse e se fundiram muito bem ao estilo criativo e ao ritmo
frenético da empresa de desenhos considerados moderninhos. Nessa parceria, cada
companhia entrou com aquilo que faz melhor, mas no fundo as duas dominam muito
bem as técnicas para construir um belo visual e um roteiro inteligente. Um
casamento perfeito. Lasseter queria realizar um trabalho que homenageasse seu
pai, um mecânico que lhe transmitiu a paixão por automóveis e também o apreço
pela nostalgia, assim uniu o útil ao agradável ao abordar o desejo de um carro
em se tornar o grande campeão de uma corrida que acaba por passar por uma
experiência única de vida em um lugar onde ser enferrujado é motivo de orgulho.
O tema se ajustou perfeitamente a proposta. Felizmente o diretor não se prendeu
ao mundo das corridas e transferiu o foco da história para uma pequena cidade a
fim de explorar o velho, mas ainda válido choque entre culturas. McQueen vem do
mundo do sucesso, dos flashs, das entrevistas e de onde levava uma vida
confortável, mas acabou caindo em um pacato local onde ele não é nada mais que
um visitante comum e onde todos têm um estilo de viver muito simples. Essa
adaptação a uma “vida normal” é a grande sacada do roteiro. Além de abrir
caminho para divertidas ironias e metáforas, a ideia também ajuda a fisgar a
atenção do público que acaba se identificando com esse conflito, mesmo tendo em
cena carrocerias animadas ao invés de corpos de humanos, mas a certa altura até
esquecemos esse detalhe. Adaptando as partes da frente dos carros para
transformá-las em rostos, o resultado é impressionante e cada um dos
personagens consegue transmitir os sentimentos e expressões como se fosse uma
pessoa real.
Apesar dos personagens
bonitinhos e cativantes, é preciso ressaltar que o enredo faz um retrato da
sociedade norte-americana, ou melhor, de todas as sociedades que habitam cidades
grandes em qualquer parte do mundo, criticando o progresso a qualquer preço, o
crescimento desenfreado dos grandes centros urbanos e a falta de solidariedade
inerente. A paisagem cinza e engessada acaba soterrando o que há de bom e
bonito do cotidiano e do próprio ser humano e quem não segue a trilha do progresso
acaba sumindo do mapa. O vilarejo de Radiator Springs, a cidade dos carrinhos
“gente boa”, não se modernizou e acabou ficando esquecida, porém, seus
habitantes provavelmente são dotados de muito mais otimismo, bom humor e
generosidade que qualquer “saído da fábrica” que roda em alguma grande
metrópole. Quando passa alguém por perto desta cidade esquecida, isso é motivo
de festa e de tentar trazer lucros ao local, bem no estilo de cidadezinhas
reais que parecem que pararam no tempo, paisagens que muitos custam a acreditar
que ainda existam. Aliás, a mitológica Rota 66, onde se encontra o fictício
vilarejo dos modelos fora de série, é um desses lugares literalmente
esquecidos. Ela foi a primeira rodovia interestadual norte-americana e entre os
anos 50 e 60 tornou-se a estrada principal do país, mas quando uma nova pista
mais ampla e com melhorias foi inaugurada a Rota 66 caiu em desuso e hoje está
entregue ao matagal e a depredação natural. A ambientação da trama nesse espaço
desolador e atualmente pouco conhecido foi uma opção arriscada de Lasseter, também
autor do roteiro em parceria com Dan Fogelman, mas prova mais uma vez que
cinema é cultura. Para bater de frente com o ar vintage do vilarejo, o diretor
ainda procurou na abertura e no fechamento do longa ressaltar as diferenças
entre o mundo experimentado por McQueen e o seu habitat natural apresentando
uma síntese do que é o universo do circuito de corridas Nascar. Investindo em
colorido forte, muitos ruídos, trilha sonora forte e edição delirante que faz o
espectador sentir como se estivesse acompanhando uma corrida de verdade, com
direito a closes estratégicos de detalhes dos automóveis, todo o perfeccionismo
é justificável em nome de um realismo absurdo que neste caso felizmente
acompanha harmoniosamente uma divertida e edificante narrativa. Mesmo enraizando
a trama em ambientes que fazem muito mais sentido ao público americano, a
mensagem principal é universal e atinge em cheio crianças e adultos de qualquer
parte do mundo. O progresso trazendo novidades e o individualismo arraigado, a
tal da lei do sucesso a qualquer preço, em contraponto ao antigo com suas
tradições e espírito de coletividade, eis a grande reflexão que Carros traz à tona e que o
torna uma interessante opção para se divertir e aprender algo. Em tempos em que
o egocentrismo esta em alta, vale muito mais conquistar uma amizade ou fazer o
bem a alguém do que ganhar um troféu ou um elogio por ser autossuficiente,
tenha certeza disso. Em tempo: merece destaque a duração da produção, quase
duas horas, algo fora dos padrões de produtos infantis, mas uma decisão
necessária para a boa condução da trama, tornar crível a trajetória de redenção
do protagonista, e que de quebra afronta o próprio mercado cinematográfico que
visa lucros e não qualidade. E assim, mais uma vez, a Pixar/Disney vence uma corrida
pelo sucesso.
Animação - 116 min - 2006
Ao contrário do que dizem, é um excelente filme da Pixar. Mas tenho medo de ver o 2.
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