NOTA 9,0 Woody Allen faz uma bela homenagem a cultura e a Paris celebrando o passado, mas sem menosprezar o presente |
O cultuado ator, roteirista e
cineasta Woody Allen parece uma máquina de fazer filmes e praticamente lança um
por ano, embora a maioria de seus títulos acabe chamando a atenção apenas de
seus fiéis fãs. Todavia, com uma extensa filmografia, é curioso, mas parece que
conforme suas produções envelhecem suas visibilidades tendem a aumentar, um
efeito contrário as regras do próprio mercado cinematográfico que cada vez mais
procura enterrar o mais rápido possível os filmes “velhinhos”, mesmo os
pertencentes a um passado recente. Aliás, a exaltação da nostalgia quanto ao
cenário cultural e seus bens e representantes é o que serve de alicerce para um
marco na carreira do diretor. Meia-Noite em Paris surpreendeu com
a polpuda massa de espectadores que conseguiu arrebatar e ainda atinge. O
projeto já vinha sendo comentado meses antes de seu lançamento, o que é comum
acontecer em torno de novos trabalhos de Allen que tem como uma de suas marcas
registradas reunir sempre um excelente elenco para interpretar as histórias que
o próprio escreve e que geralmente circundam assuntos semelhantes, como no caso
em que uma crise existencial e o medo do fracasso rondam a vida protagonista. O
enredo nos apresenta a Gil Pender, interpretado por um surpreendente Owen
Wilson fazendo às vezes de alterego do cineasta. O rapaz admira os grandes
escritores e sempre sonhou em ser reconhecido de forma semelhante, mas mesmo
trabalhando como roteirista de cinema em Hollywood e sendo bem remunerado ele
ainda se sente frustrado e longe de seus reais objetivos visto que é muito
crítico com seus próprios escritos. Prestes a viajar para Paris com sua noiva,
Inez (Rachel McAdams), e seus futuros sogros, John (Kurt Fuller) e Helen (Mimi
Kennedy), ele nem imagina que o passeio será renovador. O pai da garota irá à
famosa Cidade Luz para fechar um grande negócio, mas durante toda a viagem não
se preocupa nem um pouco em esconder que não gosta do genro, contudo, problemas
familiares à parte, estar desfrutando de uns dias em uma cidade também
conhecida como um berço cultural e fonte de inspiração para muitos artistas acaba
fazendo com que Gil volte a se questionar sobre os rumos que deu a sua vida,
voltando a sonhar em um dia se tornar um escritor renomado. Visto por essa
breve sinopse, o longa pode parecer um tanto simplório e com uma dramaticidade
de baixo impacto, mas o segredo desta produção está justamente no
desenvolvimento do argumento que guarda algumas interessantes surpresas, alguns
toques especiais que certamente são mais facilmente identificáveis para os
espectadores apreciadores da arte e cultura em suas diversas manifestações,
porém, tudo apresentado de forma com que o público leigo também possa desfrutar
da experiência.
Após deixar um pouco de lado os
cenários nova-iorquinos e apostar nas passagens européias, fase iniciada com o
bem sucedido Match Point – Ponto Final,
Allen conquistou uma nova leva de fãs, reforçou os laços com os antigos e até
mesmo fez as pazes com os que se decepcionaram com os seus trabalhos datados de
uma fase em que sua filmografia se resumia muito mais em quantidade do que
qualidade. Contudo, fora a repercussão positiva de Vicky Cristina Barcelona, o cineasta ainda devia novos produtos que
garantissem a manutenção de seu público e para tanto foi neste caso se inspirar
em fontes corriqueiras do cinema: a constante insatisfação do ser humano e sua
natural vontade de voltar ao passado seja para viver experiências inéditas,
traçar uma nova trajetória para sua vida ou mesmo para fugir de uma realidade
que não lhe agrada. Tais temas estão sempre povoando as mentes das pessoas e
Allen tira proveito disso usando um viés original, interessante e no qual é
possível sentir suas reais emoções graças ao tom de homenagem com o qual ele
aborda a poesia, a música, a literatura, as artes plásticas e o próprio cinema.
Ao soar das dozes badaladas do relógio a noite, Gil, certa vez caminhando pelas
ruas parisienses após beber algumas doses de vinho, não encontra o caminho de
volta para o hotel, mas é encontrado por um carro de estilo antigo cujos
passageiros o convidam para um instigante passeio. Aceitando a proposta, o
rapaz acaba viajando no tempo e aterrissando na romântica, cultural e virtuosa
década de 1920 e encontrando nomes famosos do cenário artísticos e intelectual
da época. De repente ele se vê na companhia do músico Cole Porter (Yves Heck),
do pintor Pablo Picasso (Marcial Di Fonzo Bo), do cineasta Luis Buñuel (Adrien
de Van) e do escritor Ernest Hemingway (Corey Stoll), só para citar alguns dos
exemplos. Provando que Gil nasceu próximo do final do século 20 por um desvio
do destino, ele não estranha os encontros com tais personalidades e a recíproca
é a mesma. Os diálogos surgem naturalmente e sem aquelas forçadas e previsíveis
tiradas para causar humor contrastando o passado e o presente e a cada nova
badalada da meia-noite que para muitos anuncia o limite para ficar acordado,
para Gil significa o início de uma produtiva noite regada a conversas que mexem
com seu emocional e sua razão. Para os espectadores, cada novo passeio do carro
antigo cria uma deliciosa expectativa para descobrirmos qual será o novo
intelectual ou artista que entrará em cena. As diferentes nacionalidades de
tais personalidades têm justificativa. Para quem não sabe Paris, além de
prestigiar os seus trabalhadores do campo cultural, há muitos anos recebe de
braços abertos artistas que não tiveram oportunidades em seus países, inclusive
muitos americanos fizeram suas carreiras em solo parisiense. Curiosamente o
próprio Allen que exaltou Nova York e suas adjacências em dezenas de filmes
chegou a um ponto em que seus projetos já não recebiam incentivos financeiros
dos ianques o que o obrigou a virar a lente da sua câmera para paisagens
européias. Há males que vem para o bem. Podemos dizer que o diretor aderiu ao
realismo fantástico e escolheu uma cidade-símbolo como palco para este trabalho
como uma forma poética de agradecer a tudo que a Europa lhe ofereceu, afinal de
contas, como já dito, essa sua fase profissional o trouxe de volta a mídia
tornando-se um nome tão importante quanto o de Pedro Almodóvar ou Tim Burton
para o cinema contemporâneo (só para ficar em alguns exemplos de cineastas que
tem um estilo bem definido e os fãs já sabem o que esperar de suas obras).
Embora exalte nomes importantes
do campo cultural e a dúvida do protagonista seja teoricamente aceitar ou
abdicar do sucesso em troca de ao menos uma obra memorável que coloque seu nome
na História, o longa não faz questão de enaltecer o intelectualismo, tanto que
Gil provoca um possível rival no amor, Paul (Michael Sheen) quando este se gaba
de conhecer a obra do escultor Rodin ou os detalhes do histórico dos famosos
jardins de Versalhes, por exemplo. Não adianta nada ostentar os conhecimentos
de arte se não há experimentação da mesma. Engana-se quem ainda resiste a
assistir a este filme com medo de longos discursos rebuscados sobre obras
literárias ou movimentos artísticos. As conversas do protagonista com seus
ídolos causam humor justamente por nos surpreender com o teor descontraído que
carregam deixando até mesmo escapar alguns segredinhos, como conturbadas
relações amorosas, ou por colocarem em pauta temas que hoje em dia são
relevantes. Ao mesmo tempo todos os mestres plantam na cabeça de Gil alguma
reflexão para que ele possa tirar algum proveito em seu presente, inclusive
rever seus sentimentos em relação a noiva e suas expectativas para o futuro. Allen
também não quer dizer que os tempos atuais são pavorosos e que no passado é que
se encontram os bons momentos da humanidade. É feita uma reflexão sobre a
atualidade e das razões que nos fazem desqualificá-la constantemente. No fundo,
as situações que vivemos hoje tem certa ligação com os acontecimentos de ontem
e é preciso saber absorver as coisas boas para fazermos o tempo atual e o que
está por vir melhor. Como a insatisfação é natural do ser humano, a tendência é
sempre exaltarmos o passado, mas é preciso ter em mente que quem viveu décadas
atrás também não era plenamente feliz. O próprio trabalho dos homenageados no
filme certamente eram formas de se expressar e manifestar anseios e insatisfações
seja através de letras de música, livros ou mesmo um quadro. Existe um vasto
histórico de bens culturais no mundo todo que abalaram estruturas sociais e até
mesmo políticas, como no caso da Ditadura Militar no Brasil que chegou a exilar
ou matar artistas e pensadores. Mas Allen não quis trair seu estilo e não levou
a discussão para esse caminho tão duro preferindo manter sua obra com aura leve
e onírica. Drama ou comédia? É difícil classificar, mas genericamente o filme é
vendido como uma produção de humor, porém, de qualidade técnica e narrativa
infinitamente superior a tantos outros títulos da categoria. Meia-Noite
em Paris deve fazer muita gente se lembrar de outro trabalho importante
do diretor, A Rosa Púrpura do Cairo,
por causa do uso do recurso da metalinguagem e da arte como instrumento de
escapismo a realidade que nem sempre é tão bela. Acostumado a abusar de
referências artísticas em suas produções e algumas vezes citar Paris com
carinho, talvez nunca Allen tenha investido tanto na estratégia e a Cidade Luz,
embora apareça em cena com todos os seus costumeiros pontos turísticos, surge
de forma diferenciada, iluminada, belissimamente fotografada. Em suma, tal
filme só poderia mesmo ser fruto da visão de um apaixonado pelo local. De um
amante das artes. De alguém interessado nas emoções humanas. De um homem que
respeita a alcunha do cinema como sétima arte. Um legítimo exemplar da grife
Woody Allen.
Vencedor do Oscar de roteiro original
Comédia - 100 min - 2011
Não sou grande fã do diretor. Porém, como você mesmo cita esse é um trabalho que realmente surpreende.
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