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terça-feira, 24 de novembro de 2015

O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN

NOTA 9,0

Delicadeza e criatividade de
longa francês prova que o
cinema alternativo não é
apenas para intelectuais
Cinema europeu é chato e cabeça demais. Tal afirmação é muito comum, mas quem concorda com ela precisa rever seus conceitos e se abrir a novas experiências, como prova O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, um título apreciado e elogiado por muitos, mas considerado desinteressante e cansativo por tantos outros, mas será que essas pessoas que criticam negativamente realmente assistiram a obra ou simplesmente estão passando adiante pensamentos obsoletos? Com certeza o fato de ser uma produção francesa barra uma grande parcela dos espectadores que devem estar impregnados da ideia de que o cinema francês é contemplativo demais e com foco em histórias dramáticas ou muito romanceadas. Bem realmente, estas são características da produção cinematográfica local, mas sempre é possível encontrar algo diferenciado dando uma garimpada. No caso desta produção assinada por Jean-Pierre Jeunet nem é preciso fazer muito esforço para encontrá-la já que foi um título muito premiado e cumpriu sua trajetória de sucesso até a festa do Oscar chegando lá com pinta de campeã, mas acabou levando um banho de água fria perdendo suas cinco indicações. Porém, a análise de resultados finais tanto de críticas quanto de bilheterias resultou em um banho do melhor champagne francês. Assistido na época por cerca de vinte milhões de pessoas, até hoje esta obra é uma das mais procuradas em locadoras e se tornou um marco cinematográfico devido a sua estética, linguagem e ritmo atípicos para a filmografia de um país cujas marcas registradas são as longas sequências focadas em olhares e gestos e um erotismo quase sempre presente nas narrativas. Amado e odiado nas mesmas proporções, o cinema francês não se firmou como uma indústria de fazer dinheiro, mas sim como um estilo de produzir cinema que gera bons e maus resultados, mas sem causar estardalhaços tampouco criando ícones pop, bem diferente da cinematografia americana que quer vender muito mais que os tickets das salas de exibição e imprime uma velocidade em suas produções que acaba atrapalhando muitas vezes a condução das histórias, além dos muitos efeitos e tecnologias serem empregados para escamotear furos e ausências.

Claro que as obras existencialistas e dramaticamente exageradas continuam sendo feitas aos montes na França, mas é perceptível que há uma corrente de realizadores tentando mudar a cara da produção audiovisual do país e investindo em gêneros diferenciados ou ao menos arriscando no modo de fazer. Jeunet é um destes nomes que vem fazendo a diferença. Suas obras anteriores como Delicatessen e Ladrões de Sonhos, ambas feitas em parceria com o diretor Marc Caro, já mostravam sensíveis novidades no texto e apresentações visuais de encher os olhos, apesar de sombrias. No trabalho em questão, o visual adotado é de um colorido avassalador e o texto não quebra as amarras com a tradição da contemplação e a boa construção dos personagens, mas a edição ágil, ângulos de câmera inusitados e os bons diálogos impõem um ritmo excepcional a obra e que deve sucumbir de vez a ideia que tudo que é filme francês é chato.  O universo fantástico e próximo do tom de fábula é utilizado para narrar a história de Amélie Poulain (Audrey Tautou), uma garota que passou seus primeiros anos de vida até a adolescência observando a vida dos outros, já que o seu cotidiano lhe parecia insignificante, até porque seus pais eram tão neuróticos que a mantinham longe de tudo e de todos por acreditarem que ela sofria do coração porque ele batia aceleradamente toda vez que passava pelos exames mensais que, curiosamente, eram feitos por seu próprio pai e seriam os únicos momentos de maior contato entre eles. Assim, ela cresceu solitária e até seus estudos eram feitos em casa aproveitando que sua mãe era professora, mas ela veio a falecer prematuramente. A jovem, sem ter plenos conhecimentos a respeito do mundo existente fora de sua casa, acreditou que sua vida se resumiria a solitária atividade do voyeurismo. Ela é a personificação da expressão "sonhando acordado", vivendo em um mundo idealizado, colorido e aparentemente atemporal, quase como a clássica personagem literária Pollyanna. Quando adulta, ela se muda para o bairro parisiense de Montmartre onde trabalha como garçonete e sua vida ganha sentido a partir de um simples acontecimento. Ela descobre no rodapé de seu banheiro uma caixinha com alguns objetos e fotografias do antigo morador e decide devolver estas lembranças. Ao presenciar a alegria de Dominique (Maurice Bénichou) com o retorno de seu pequeno tesouro, Amélie decide que seu destino é ajudar as pessoas a sua volta e assim começa a trajetória de uma alma bondosa tentando levar alegria e esperança a desconhecidos ao mesmo tempo em que faz um bem a si mesma, apesar de lhe fazer falta o amor de um homem.

Durante o desenrolar da história, em que bola planos mirabolantes para levar alegria a quem precisa, Amélie encontra diversos personagens com personalidades e histórias de vidas diversas como o vizinho conhecido como "homem dos ossos de vidro", o rapaz da quitanda que o patrão humilha a vontade, entre tantos outros. Desta forma os horizontes da jovem se abriram e ela conheceu diversos mundos particulares, inclusive o do grande amor da sua vida, Nino Quincampoix (Mathieu Kassovitz), um rapaz tão solitário quanto ela própria que gosta de colecionar coisas inusitadas, como fotografias instantâneas que recolhe nas latas de lixo. Assim, ele também busca um sentido para sua vida e se alimenta das lembranças alheias. Um par perfeito que ganha a torcida do espectador facilmente que a esta altura já está embriagado da atmosfera nostálgica e bucólica, já que o cenário parisiense escolhido, o bairro de Les Abesses, guarda a sensação de que o tempo não passou por lá e tudo lembra o final do século 19 ou início do 20. O longa inclusive ajudou a revitalizar o vilarejo e a recuperar o interesse de turistas em conhecê-lo. Audrey Tautou tirou a sorte grande ao ficar com um papel que estava destinado a Emily Watson, inclusive a ambientação da história era outra. A jovem atriz francesa viu da noite para o dia seu nome estourar e assim ela passou a ser nome comum nos filmes franceses, mas também atravessou o oceano para trabalhar em Hollywood, ganhando até um papel importante no blockbuster O Código da Vinci. Todavia, só sua presença carismática não justificaria o sucesso do longa. Jeunet tinha o desejo de realizar uma obra que fosse acessível e prazerosa ao maior número de pessoas e acertou em cheio. Contou muito para a boa aceitação o interessante visual da fita. Foi empregada a mais alta tecnologia de efeitos visuais, mas são quase imperceptíveis nos retoques exigidos para melhorar a captura de cenas do bairro parisiense real que ganham ainda mais charme com uma belíssima trilha sonora. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um romance singelo, comovente, onírico e ao mesmo tempo um caldeirão fervilhante de ideias quase surreal. A grande mensagem do longa é mostrar que as coisas boas e importantes da vida estão em pequenos gestos, em rápidos momentos, nas lembranças despertadas por um som ou objeto ou nas expressões de tristeza ou alegria que esboçamos. Bem no início do filme, a protagonista olha para a câmera e afirma que gosta de ver as reações contidas nos rostos das pessoas no escurinho do cinema. Ela provavelmente iria adorar ver as reações do público quando sua história foi exibida nas salas escuras. Alegria, satisfação, emoção ou até mesmo tristeza, melancolia ou raiva estampada em cada olhar. Cinema é assim mesmo e deve despertar as mais diversas reações. Agora, no aconchego do lar, as expressões podem se manter ou mudar, basta fazer o teste. E para aqueles que ainda acreditam que filme francês é chato, eis uma boa opção para começar a mudar suas convicções. No mínimo, uma obra respeitável e diferenciada.

Comédia romântica - 122 min - 2001 

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