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quarta-feira, 3 de abril de 2024

CIDADE DO SILÊNCIO

 
Nota Exploração e perigos de trabalho em condições desumanas são abafados por magnatas


Embora hoje muitos tenham acesso a tecnologia de ponta, o que indicaria bons níveis econômicos e culturais, e a mídia venda a ideia que o mundo tecnológico abrange as pessoas em níveis semelhantes em todos os países, é extremamente necessário vez ou outra pararmos para pensar que enquanto você e seus amigos se divertem com tablets, iphones e tantas outras bugigangas moderninhas ainda existem milhares de pessoas espalhadas por aí que vivem em condições precárias e nem mesmo podem ter um aparelho de TV. O pior de tudo é constatar que são justamente estas pessoas a margem da sociedade ideal que trabalham na fabricação dos bens de consumo que a elite consome. Há muitos magnatas querendo fazer fortunas jogando para debaixo do tapete as sujeiras que envolvem o mundo dos negócios e explorando a mão-de-obra de grupos menos favorecidos intelecto e financeiramente. É em torno desse jogo de interesses, desprovido de direitos básicos aos seres humanos, que gira a trama de Cidade do Silêncio, um providencial filme-denúncia roteirizado e dirigido por Gregory Nava que escancara alguns dos podres que existem por trás do chamado Tratado de Livre Comércio. 

Baseado em fatos reais, ou melhor, sintetizando em uma mesma história centenas de casos semelhantes, o longa revela que o famoso acordo que permite que empresas do mundo inteiro montem fábricas na região de fronteira entre o México e os EUA não é tão próspero quanto parece ser. A cidade de Juarez tem sua economia praticamente toda baseada nos lucros obtidos de empresas fabricantes de equipamentos eletrônicos para exportação. Além da isenção de impostos, os empresários têm como chamariz o fato da mão-de-obra- ser muito barata, basicamente composta por mulheres latinas, muitas delas adolescentes que chegam a deixar suas famílias em outros países para conseguirem um emprego que lhes ofereça algum tipo de estabilidade financeira. As mulheres que aceitam atuar na produção das fábricas são remuneradas com baixos salários e trabalham quase que em regime de escravidão, sujeitando-se a longas e abusivas jornadas de trabalho diárias por não terem outra opção ou até mesmo por ingenuidade, porém, os piores momentos de suas rotinas se encontram fora das empresas, principalmente a noite quando precisam aguardar para embarcar nas lotações que deveriam levá-las para suas casas, mas as vezes o trajeto se resume a uma viagem sem volta. Para retratar esta denúncia social, o longa opta por acompanhar uma garota em específico, Eva (Maya Zapata), e sem rodeios o roteiro parte logo para o que interessa nos posicionando a respeito da vida da jovem. 


Recém-saída de seu turno de trabalho, Eva primeiro pechincha uma boneca na feira para presentear a irmã, revelando que seu poder aquisitivo não é alto, mas seu carinho pela família é grande, excluindo assim qualquer saliência da personagem que poderia justificar a abordagem por um homem. Depois ela segue para pegar o ônibus como tantas outras colegas, mas quando se dá conta está sozinha na condução e não reconhece o caminho que o motorista está fazendo, este que logo deixa a direção para se aproveitar da garota com a ajuda de outro criminoso. Seus agressores pensam que ela está morta e a enterram em uma região descampada, porém, ela consegue escapar. Agora, Eva é a prova viva dos crimes que são encobertos pelos interesses das grandes corporações e também é a matéria que a jornalista Lauren Adrian (Jennifer Lopez) tanto aguardava. Quando soube das condições desumanas em que as mulheres trabalham em Juarez, George Morgan (Martin Sheen), editor-chefe de um famoso jornal de Chicago, decide enviar a repórter para a fronteira para fazer uma matéria especial. A moça vai a contragosto, mas caso faça um bom trabalho poderia ter a chance de ser  promovida a correspondente estrangeira. Ao chegar a seu destino, ela se empolga ao saber mais detalhes sobre os casos de exploração e mortes com um ex-colega, Alfonso Diaz (Antonio Banderas), que agora é editor de um jornal local e discorda veementemente das versões dadas como oficiais sobre os atos de violência, simplesmente definidos como casos isolados e sem o menor traço de ligação uns com os outros. Violência doméstica, uso de álcool e drogas e mulheres incautas na hora e lugar errado são as desculpas mais comuns.

Quando Lauren conhece o caso de Eva decide que a garota será a personagem principal da sua matéria e a ajuda a se esconder até que chegue o dia em que ela vá depor no tribunal e finalmente toda verdade possa ser publicada. A decisão da jornalista tem um fundo emocional. Seus próprios pais foram vítimas de exploração no trabalho e brutalmente mortos, o que causa uma identificação imediata com o caso da mexicana, ainda que seus ideais de vida revelem o abismo que existe entre elas. Por exemplo, além da questão financeira, Eva deseja formar uma grande família como sua mãe e se contentaria em ter um emprego que lhe desse o mínimo de dinheiro e proteção e não compreende como Lauren prefere abrir mão da maternidade para investir na carreira. O interessante deste longa é verificar a validade do ditado que diz que onde há fumaça há fogo, no caso, um incêndio gigantesco e com diversos focos. Conforme Lauren e Diaz investigam o caso de Eva, muitos outros episódios semelhantes vão sendo levantados e entra em jogo a idoneidade da polícia, o envolvimento do tráfico de drogas e de órgãos humanos, a exploração sexual e sobra até para os governos mexicano e americano que poderiam (alguém duvida?) colaborar para que os crimes fossem abafados para não atrapalhar as negociações para manter e atrair multinacionais na fronteira entre os países, tanto que o número de mulheres desaparecidas na versão oficial é drasticamente reduzido, embora mesmo nessas condições a soma já seja assustadora. É revoltante também observar na reta final como o campo jornalístico também não preza pela verdade e tampouco tem consideração pelos seres humanos, interessando muito mais um contrato milionário de publicidade, mesmo que proveniente de investidores com ficha declaradamente suja. 


Compilando uma importante e impactante seleção de denúncias, talvez o único defeito de Cidade do Silêncio seja a personagem Teresa (Sônia Braga), uma mulher que abriga Eva durante os dias que antecedem sua denúncia perante o juiz. Não fica bem claro se ela tem um abrigo próprio para mulheres sob ameaças e existe certa ambiguidade em seu perfil que por vezes nos deixa com a pulga atrás da orelha se ela trairia a confiança de Lauren, um bom gancho que foi desperdiçado.  O filme pode passar a falsa impressão de que é um veículo premeditado para solidificar a imagem de Lopez, todavia, ela se sai muito bem no papel de uma mulher forte e obstinada e não ofusca o conteúdo-denúncia da obra, tanto que por seu empenho (ela também é produtora) recebeu o prêmio Artistas pela Anistia, honra dada a personalidades engajadas em questões sociais. Uma pena que, mesmo com o nome da famosa envolvido, o longa não conquistou público e mesmo antes das filmagens serem iniciadas a produção sofreu com a indiferença e o repúdio de muitos, obrigando a equipe a trabalhar sob proteção de segurança reforçada devido as diversas ameaças e nem mesmo a cidade Juarez pôde ser usada como cenário. Ainda alguém tem coragem de colocar panos quentes nestas situações? Sim, infelizmente, mas o filme está aí para revelar um pouco de todo esse caos, ainda que fique latente um pouco de receio em sangrar totalmente as feridas.

Drama - 112 min - 2006

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