Desde que tornaram-se populares as produções de horror e
de artes marciais oriundas do Japão e da China, a indústria de cinema oriental
parece se resumir aos esforços destes dois países e aos estilos mencionados,
embora seja de conhecimento de todos que dramas com protagonistas de olhinhos
puxados costumam ter lugares cativos em festivais e, garimpando um pouco mais,
podemos descobrir aqui e ali algum exemplar de um país do Oriente com menos
tradição cinematográfica, porém, batalhando para conquistar seu espaço. A
Coréia do Sul é um desses exemplos. Caminhando a passos largos desde a década
de 1990, o país parece ter traçado um projeto para vir a se transformar em um
dos polos mais fortes da sétima arte, culminando na vitória de quatro Oscars
por Parasita, incluindo a cobiçada estatueta de melhor filme,
fazendo história sendo o primeiro longa em língua estrangeira a faturar o
prêmio máximo da festa. Na cerimônia, por diversas vezes o cineasta Bong
Joon-ho foi citado transformando-se em uma celebridade, todavia, para os
cinéfilos de carteirinha, seu nome já era conhecido por O Hospedeiro lançado
em 2006 e até então o filme mais lucrativo da indústria sul-coreana e
ovacionado por todos os festivais pelos quais passou.
Produção de horror, suspense, ficção científica, drama
familiar... É difícil catalogar este filme. A rigor trata-se de um terror trash
estrelado por uma criatura medonha, ainda que seu visual impressione. A trama
começa com cientistas em um laboratório de uma base militar americana instalada
em solo coreano. Preguiçoso e sem compromisso nenhum com a profissão que
assumiu, um deles ordena que uma substância sabidamente tóxica seja despejada
diretamente numa pia para assim ser descartada pelo esgoto em um rio.
Praticamente às suas margens vive uma família simples que sobrevive dos lucros
de um quiosque de alimentação aproveitando-se do grande fluxo do local, um
agradável parque cravado na agitada cidade de Seul, a capital do país. No
trailer reside a clã dos Park, composto pelo idoso Hie-bong (Byun Hee-bong) e
Gang-du (Song Kang-ho ), seu filho com certo retardo mental que por sua vez é
pai da adolescente Hyun-seo (Go Ah-sung ). O rapaz é irmão do recém-formado e
desempregado Nam-il (Park Hae-il) e da competidora de arco e flecha Nam-joo
(Bae Doona), frustrada por ter sido derrotada no último torneio.
Após o acidente consciente no tal laboratório, o roteiro
de Baek Chul-hyun, Hah Joon-won e do próprio diretor Joon-ho não parte
diretamente ao que já está explícito no título e gasta alguns minutos para nos
apresentar a rotina dos Park, família que irá sofrer diretamente as
consequências do acidente químico. Contudo, não demora muito para uma imensa
criatura gosmenta surgir das profundezas do rio para atacar os frequentadores
do parque. Feroz e insaciável, qualquer um que esteja na frente dessa espécie
de peixe ou anfíbio transgênico é devorado, entre eles a jovem Hyun-seo. Após o
perrengue, sem encontrar vestígios da garota, as autoridades a consideram como
uma das vítimas fatais, mas a família resolve se unir e ir à procura do bichão,
afinal enquanto não há corpo há esperanças. Ficamos então sabendo que todos as
pessoas que desapareceram não foram devoradas de imediato. O monstro as
regurgita em uma espécie de depósito junto com outras tantas quinquilharias que
engole por onde passa para posteriormente se alimentar. Hyun-seo consegue usar
o celular (é isso mesmo!) e liga para o pai, mas por conta da sua deficiência
ninguém acredita nele, exceto seus parentes. É essa relação familiar muito bem
construída que segura o longa por duas horas e não o deixa refém dos ataques da
criatura que fica na mira do governo que resolve isolar toda a área em torno do
rio, pois acredita-se que ela carrega um vírus letal. No desenrolar da trama,
vamos reconhecendo o espírito crítico da obra, sendo o mais óbvio o fato das
autoridade locais não saberem como lidar com a situação e esperarem ajuda
norte-americana.
Na figura de Nam-il também temos ressalvas à situação do
país. Diplomado, mas sem oportunidades de trabalho, acabou se entregando ao
vício do álcool e torna-se um protestante político ao passo que alguns de seus
colegas de faculdade ganham a vida com trambiques. Aliás, os esgotos de onde
sai o monstrengo também servem como ponto de entrega de mercadorias de muambeiros,
pessoas que sobrevivem às custas da criminalidade. São vários pontos que
criticam a situação de um país que por anos viveu tempos políticos sombrios e
sofreu pressão norte-americana e as consequências ainda estavam em voga. E é
claro que também há a óbvia mensagem de preservação ambiental. Com orçamento
razoavelmente apertado, a maior preocupação dos produtores era o fato do
diretor insistir em mostrar seu animal carnívoro gigante em toda sua plenitude
e não apenas sugestioná-lo ou esconder ao máximo para economizar com efeitos
especiais. Fazendo malabarismo para o dinheiro render, Joon-ho não enrola para
apresentar sua criatura que salta, mergulha e até galopa em solo seco e faz
isso com cenas em plena luz do dia e com total interação com os humanos. Só por
essa coragem o filme já se destaca entre as produções da seara de monstros e o
cineasta deixa assinatura própria em sua obra. A comédia, por sua vez, é
inserida sutilmente de forma a fazer um contraponto à tensão presente
praticamente do início ao fim.
É claro que a mistura de tantos gêneros e assuntos, além do próprio estranhamento em não ver rostos ou cenários aos quais estamos acostumados, não agrada a todos, principalmente a quem é doutrinado ao estilo hollywoodiano a quem o filme pode parecer uma versão estendida de um episódio daqueles seriados de super-heróis japoneses que combatiam monstros de borracha. Para quem tem mente aberta a novas experiências, uma boa e surpreendente opção. O roteiro é inspirado em um antigo artigo de jornal que falava sobre um peixe mutante encontrado no rio Han, o mesmo destacado no filme, e também em um incidente real envolvendo um médico legista americano trabalhando na Coréia do Sul que autorizou o derramamento direto no esgoto de centenas de frascos de uma substância contendo altas doses de formol. Juntando os dois assuntos, O Hospedeiro tem uma narrativa universal que revitaliza o subgênero já tão explorado em Hollywood e até mesmo pelo Japão com seu famoso Godzilla. Sem se contentar em fazer mais do mesmo, Joon-ho revisitou o estilo com muita propriedade e criatividade para lhe dar uma cara nova. É um filme-catástrofe no qual a natureza se vinga dos humanos e lhes cobra o preço pela destruição que sofre há décadas. Embora trabalhe esse viés crítico, além da soberania americana e problemas com a estruturação social e política sul-coreana, a produção é marcada por um humor irônico que surge das situações mais estapafúrdias possíveis, mas sem que esses momentos nonsenses desviem a atenção do espectador do foco principal.
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