Nota 1,0 Apesar do embasamento histórico, suspense se perde em teorias e situações estapafúrdias
Mistérios ligados ao catolicismo servem de matéria-prima para o cinema desde seus primórdios, vide a enorme quantidade de produções que abordam milagres, possessões, batalhas entre anjos e demônios, a relação com o futuro da humanidade e questões políticas e, inevitavelmente, seu abalo por conta de outras religiões ou até mesmo perda da fé de muitos. Devorador de Pecados faz parte desta seara, mas nem as belas e históricas locações italianas e tampouco o clima soturno de fim dos tempos conseguem fazer a produção criar raízes no imaginário de quem assiste, a não ser uma lembrança negativa de frustração. Não é um filme que investe muito em violência e mortes, mas também não convence como thriller sobrenatural perdendo foco em sua ânsia de fazer críticas ao poder do catolicismo que acabam passando despercebidas. Grupos religiosos não se manifestaram contra porque as questões polêmicas ficam diluídas em uma produção arrastada que parece ter o dobro de sua duração com a adição de uma história de amor impossível que só atrapalha a narrativa.
Alex Bernier (Heath Ledger) é um jovem padre em conflito consigo mesmo, alguém que valoriza as tradições do catolicismo, mas sabe que a religião está em decadência. Dono de um passado turbulento, suas memórias ele pode compartilhar com Mara (Shannyn Sossamon), uma artista plástica problemática que ele próprio já submetera a uma sessão de exorcismo. Eles acabam desenvolvendo uma estreita relação que consome a ambos e gera uma paixão que rivaliza com a devoção do clérigo a Deus. O rapaz é integrante da ordem dos carolíngios, grupo renegado pelo catolicismo, e seu líder excomungado Dominic (Francesco Carnelutti) morre em circunstâncias estranhas, acontecimento que promove sua ida para Roma a fim de investigar. O cadáver apresenta marcas que remetem a sinais de ações de um devorador de pecados, uma figura importante para uma seita centenária que age perdoando os erros que a Igreja rejeita. Conforme se aproximam da verdade, Bernier e Mara descobrem que o relacionamento ambíguo que vivem também pode ser alvo da ira do devorador. Para adicionar mais intrigas ao roteiro, ou no caso para confundir ou espichá-lo desnecessariamente, ainda temos a presença do cardeal Driscoll (Peter Weller), um homem ambicioso que tem interesse em suceder o Papa e cuja real identidade pode levar a humanidade a consequências fatais.
A temática de forças ocultas que querem dominar o mundo e estabelecer desoladoras premonições bíblicas já renderam clássicos como O Bebê de Rosemary e O Exorcista e o assunto voltou a ganhar força às vésperas da virada do milênio quando muito se falava sobre fim do mundo. Stigmata, Fim dos Dias e tantos outros produtos rasteiros surgiram pegando carona no medo e crendices populares que estavam em evidência, mas nenhum novo clássico da seara surgiu. O longa em questão, dirigido e roteirizado por Brian Helgeland, chegou tarde para aproveitar o buchicho. Tendo o mesmo diretor de Coração de Cavaleiro, que fez a carreira de Ledger deslanchar, só mesmo o sentimento de gratidão para justificar o porquê do ator estrelar uma produção tão ruim. Embora seu personagem tenha tido uma vida um bocado sofrida, com lembranças de ter presenciado o suicídio da mãe e por anos lutar contra sentimentos mundanos, é visível que a apatia do personagem está atrelada ao desconforto do ator em um momento de sua (breve) carreira que não precisaria se comprometer com bobagens. As atuações sem vigor de todo o elenco só colaboram para a sensação incômoda que nos acompanha do início ao fim, jogando por terra a interessante transposição de uma atmosfera arcaica e medieval para brigar por espaço em meio ao moderno ambiente do século 21.
William Eden (Benno Fürmann) assume o papel-título, um homem imortal e com poderes sobrenaturais, possuidor de grandes e importantes conhecimentos adquiridos ao longo dos anos salvando almas perturbadas. O personagem tem raízes em bases históricas que afirmam existir um ser imortal que expurga os delitos de uma pessoa à beira da morte, transferindo para si a energia negativa e assim deixando a alma do desencarnado livre para seguir em paz mesmo sem a confissão à Igreja e seu perdão. A prática foi bastante comum até meados do século 19 em alguns poucos países com a Escócia e a Inglaterra, mas se a suposta lendária entidade limpa as almas para seguirem em paz em outro plano por que combatê-la? O catolicismo sempre buscou esconder de seus devotos essa alternativa à confissão para tentar manter sua soberania e não deixar que seus podres viessem à tona. O devorador de pecados seria como a materialização do horror predominante nos tempos da Inquisição, época em que muitos inocentes acusados de feitiçaria e adoração ao diabo foram assassinados em atos cruéis endossados pela Igreja através de decisões autoritárias e arbitrárias. Ou seja, os casos investigados no longa que apontam para a participação da entidade seriam de pessoas cujas mortes foram planejadas para a concretização de algum sórdido objetivo.
Depois de uma série de eventos misteriosos e estudos com base em antigas escrituras e investigações, Eden tem sua identidade revelada, mas demonstra estar cansado de sua condição sublime e tem um plano para o padre Bernier, algo previsível diante do perfil rebelde do rapaz. A presença de algo maligno na Terra também é denotada pela aparição de duas sinistras crianças órfãs, interpretadas por Mirko Casaburo e Giulia Lombardi, que servem de hospedeiras de crias de demônios. Sem emitirem uma palavra sequer, a dupla intimida com seus olhares frios e expressões sérias que lançam quando surgem e denunciam que algo ruim vai acontecer. Apesar de um generoso orçamento, Devorador de Pecados em sua essência é um filme B. Não adianta o cuidado com a fotografia para realçar sombras e destacar as belas locações carregadas de elementos góticos, a trilha sonora composta de cânticos oriundos de ritos religiosos e tampouco manter a beleza estética economizando no sangue. O próprio desenvolvimento do roteiro passa a sensação de uma produção deslocada de seu tempo, como se fosse um projeto barato de décadas atrás feito com o único objetivo de pegar carona em sucessos alheios. Como foi lançado o filme já é intragável, mas poderia ser pior. Uma primeira exibição-teste obrigou Helgeland a revisar seu trabalho, principalmente quanto ao emprego dos efeitos especiais, mas não adiantou muito. Entre as obras sobre celeumas apocalípticas e de possessão, esta ocupa um honroso lugar no limbo.
Suspense - 103 min - 2003
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