O
escritor Stephen King já publicou diversos best-sellers que se transformaram em
filmes de sucesso como O Iluminado, e outros
dispensáveis, caso de O Apanhador de Sonhos, mas de qualquer forma
seu nome atrai público tanto que até pequenos contos do autor já ganharam
adaptações modestas para o cinema ou telefilmes. Com dificuldades nos últimos
anos para transformar suas obras em grandes produções, na era dos serviços de streaming
o mestre do suspense parece ter encontrado sobrevida. Diversas de suas
publicações ganharam adaptações diretas para consumo doméstico. Econômico
quanto ao elenco e cenografia, Jogo Perigoso é
baseado no livro homônimo lançado em 1992 e narra uma noite inesperada na vida
de Jessie (Carla Gugino) e Gerald (Bruce Greenwoo), um casal que para apimentar
a relação decide viajar para um local isolado onde poderão colocar em prática
alguns fetiches. Na verdade, eles querem superar problemas conjugais, algo que
é mostrado sutilmente logo no início quando ele coloca a mão sobre a perna da
esposa enquanto dirige e ela puxa a mão em direção a seus lábios indicando para
ele lhe dar um beijo. O que poderia ser interpretado como um gesto de carinho,
também pode revelar o desconforto da mulher em ter seu corpo tocado. Logo
também percebemos que o marido tem dificuldades para deixar o trabalho de lado
e isso se reflete na forma de uma impotência sexual.
Para
reverter a situação, Gerald propõe à mulher uma fantasia de dominação
algemando-a à cabeceira da cama para criar uma situação de estupro simulado. O
que era para ser excitante acaba gerando um grande desconforto para ela e
consequentemente a frustração do marido, assim o casal inicia uma discussão que
culmina com o falecimento de Gerald devido a um ataque cardíaco fulminante. Se
já não fosse desesperador o bastante se sentir culpada por uma morte, Jessie
ainda fica no sufoco por estar com os dois braços presos à cama e agora sozinha
em uma casa isolada de tudo e de todos sem a possibilidade de se soltar. A
situação vai piorando conforme o sol vai se pondo e a noite pedindo espaço,
assim ela se vê cada vez mais agoniada, sentindo dores, fome e sede e tendo
como única companhia um cão que haviam se deparado à caminho do local e que o
invade misteriosamente já objetivando devorar lentamente o corpo do falecido. O
argumento sugere um suspense enfocando o instinto de sobrevivência com a
protagonista fazendo de tudo para tentar fugir. Bom, não deixa de ser também,
mas as intenções do diretor Mike Flanagan não são tão rasas. Rapidamente ele
muda o foco para um viés psicológico colocando Jessie a dialogar intensamente
com uma visão dela mesma em versão mais segura e auxiliadora. Também surge a
figura de Gerald vagando pelo quarto, sem sinal algum de mordidas do cachorro,
para confrontá-la.
Após o
primeiro ato, praticamente tudo que vemos são delírios da mente perturbada da
protagonista, uma perspectiva bastante tensa, pois ninguém sabe melhor o que
nos machuca e causa pânico do que nós mesmos. As conversas imaginárias foram as
maneiras encontradas para fazer a personagem se sentir instigada a vencer o
desafio de se desvencilhar das algemas e, mais que isso, resolver conflitos
internos que a perseguiam desde a infância. Ela por várias vezes se recorda de
Tom (Henry Thomas), seu pai que a molestava e ainda a manipulava de forma a
convencê-la a acobertar os abusos. Um dos flashbacks inclusive a mostra ainda
garota deitada na cama com os braços abertos, a mesma posição em que se
encontra algemada, uma forma simbólica de mostrar que desde criança de certa
forma ela estaria presa a algo. Ainda em suas alucinações surge uma decrepita
figura que ela apelida de Homem do Luar (Carel Struycken), uma criatura que
aparece em alguns rápidos momentos e estranhamente retorna nos minutos finais
em uma trama paralela envolvendo necrofilia que está completamente à margem da
espinha dorsal do enredo. Em cerca de quinze minutos o estranho personagem
ganha sua própria história, da introdução à conclusão, mas tudo de uma forma
acelerada que destoa do ritmo impresso no restante do longa. Não chega a
invalidar o que acompanhamos até então, mas certamente esse desfecho tira
pontos do conjunto, ainda que o surgimento do tal homem misterioso possa
interpretado como a materialização dos medos e traumas de Jessie.
Com
roteiro de Jeff Howard em parceria com Flanagan, não é difícil perceber o
tamanho do desafio que envolvera a adaptação da obra de King. Para preencher
pouco mais de uma hora e meia e ainda com um espaço físico limitado a explorar,
apenas um quarto, a opção foi rapidamente apresentar o conflito central e a
partir dele esmiuçar as particularidades da protagonista e consequentemente de
seu cônjuge. Em paralelo são trabalhados os esforços dela para sobreviver, como
evitar dormir, policiar os movimentos dos pulsos para não os ferir e seus
esforços para conseguir tomar e fazer render um copo de água, a única forma que
teria para manter seu corpo alimentado. Infelizmente, o diretor fez escolhas equivocadas
entre o que aproveitar e o que descartar do material original. O filme seria
bem mais interessante caso mantivesse todas as atenções no confronto de Jessie
com seu passado, mas o diretor preferiu destacar o encontro com, digamos, sua
intuição e a visão de seu marido com vida, o que em um primeiro momento podem
soar como elementos sobrenaturais. Inicialmente, os diálogos com tais
alucinações são o grande trunfo da produção, mas a certa altura tornam-se
enfadonhos e até reforçam a impressão de que a protagonista é uma mulher fraca
e submissa, mesmo na iminência da morte. Ela parece não saber como agir por conta
própria diante da situação limite que vivencia e acata todos os conselhos que a
visão mais segura de si mesma lhe transmite pacientemente.
Gugino carrega o filme nas costas com bastante segurança e, mesmo praticamente inerte, consegue expor as transformações da personagem conforme confronta seus medos. Trabalhando bastante suas expressões faciais, beneficiada por seus grandes e expressivos olhos claros, a atriz consegue transmitir alternadamente insegurança e determinação. Greenwood também tem seu momento para se destacar quando em alucinação faz um longo monólogo apresentando a verdadeira personalidade de Gerald e o que pode vir a ocorrer com a esposa quando sua morte for descoberta. Responsável por Hush – A Morte Ouve e Ouija – A Origem do Mal, entre outras obras de suspense, Flanagan tem intimidade com este universo e sabe criar uma atmosfera tensa sem apelar, ao menos não em excesso, as mais conhecidas convenções do gênero, como pode ser observado, por exemplo, na economia da trilha sonora e dos movimentos rápidos de câmera. Ainda que se encerre com a impressão de que durou mais tempo que o necessário, Jogo Perigoso surpreende ao fugir de sustos óbvios e cenas impactantes e focar no aprofundamento do viés psicológico de sua protagonista, mas ainda assim criando obstáculos convincentes e interessantes para preencher o enredo.
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