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quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A LEOA


Nota 9 Doença rara é abordada com maturidade, sensibilidade e dramaticidade no ponto ideal


Assim como a produção de muitos países chega na base do conta-gotas ao Brasil, o cinema norueguês também raramente tem a oportunidade. Nesse ponto, os serviços de streaming são positivos oferecendo uma grande vitrine a títulos pouco divulgados que podem vir a ser conhecidos não apenas por um público mais seleto, mas também por populares que tem total condição de compreenderem seus conteúdos como é o caso de A Leoa cujo mote principal é o preconceito. Em meados de 1910, Eva (Mathilde Thomine Storm) nasceu com um problema genético raro que aumenta excessivamente a quantidade de pelos por todo o corpo, a então pouco conhecida hipertricose. Desde os primeiros minutos de vida sofreu com a rejeição do próprio pai, Gustav (Rolf Lassgärd), além de ter perdido a mãe durante o parto. Crescendo praticamente fechada em casa, não podia sequer se aproximar das janelas, e cheia de sonhos a serem realizados, como o direito a estudar, a menina ainda criança procurou enfrentar o preconceito de seu pequeno vilarejo, mas talvez não imaginasse o tanto de dificuldades que enfrentaria. 

A única pessoa com quem a pequena podia contar era com sua ama de leite Hannah (Kjersti Tveteräs), depois também sua tutora, que nunca demonstrou estranheza por sua aparência, sempre fora muita amável e a protegia quando julgava que seu pai passava dos limites da super proteção, embora sempre fosse com as melhores intenções e também para ele próprio não sofrer humilhações. Criando um mundo próprio enclausurada, Eva acaba por desenvolver uma inteligência acima da média, principalmente quanto a cálculos matemáticos com o que viria a trabalhar no futuro, porém, na adolescência vivenciou momentos libertadores ao ingressar em um grupo circense composto por outras pessoas portadoras de anomalias, mas nem por isso incapazes ou desprovidas de algum dom em especial. Nesta fase de sua vida ela também experimenta pela primeira vez a atenção sincera de seu pai que a leva para uma viagem à Copenhagen onde ocorreria uma conferência entre cientistas para debater moléstias de pele.


A hipertricose, também conhecida como síndrome do lobisomem ou de ambras (uma de suas variantes), ainda é uma doença rara e sem cura que só poupa seus portadores de terem pelos nas palmas das mãos e planta dos pés. O longa americano A Pele já havia abordado o tema ao fazer uma biografia do fotógrafo Lionel Sweeney portador da enfermidade e que ganhou notoriedade com seu trabalho focado em dar visibilidade a outros excluídos pela sociedade. O tratamento paliativo é através da retirada dos cabelos excessivos via métodos de depilação ou raspagem com aparelho de barbear. Em sua maioria os casos são devido a heranças genéticas, mas também podem ocorrer espontaneamente, o que dificulta descobrir sua origem, o que se aplica ao caso de Eva. A graciosa Storm interpreta a personagem boa parte do tempo, mas a mesma é vivida por Aurora Lindseth-Lokka na infância e por Ida Ursin-Holm como a jovem adulta. É envolvente e edificante ver que uma garota que tinha tudo para ser depressiva ou violenta não se deixa abater e vai em busca de seus sonhos, tolerando em segredo muitas das ofensas que recebia nas ruas para não preocupar o pai e assim manter o pouco de liberdade que veio a conseguir.

É muito tocante acompanhar como Gustav vai amolecendo seu coração e da repulsa inicial passar a demonstrar preocupação com a filha quanto a seu envolvimento com uma cruel e injusta sociedade acostumada a medir caráter pela aparência. No início do século 20 não se usava o termo bullying, mas é desolador ver que as ditas brincadeiras de mau gosto foram se perpetuando e até se agravando com o passar das décadas. Dirigido e roteirizado pela norueguesa Vibeke Idsoe, baseado na obra do escritor Erik Fosnes Hansen "The Lion Woman", A Leoa ganha pontos ao não deixar a história de Eva extremamente melodramática, mas também não espere uma obra edificante convencional. A força de vontade da garota em vencer barreiras preconceituosas é admirável, mas o roteiro não facilita seus caminhos e apresenta diversas cenas de humilhação e as próprias reflexões da protagonista indicam sua consciência do quanto a realidade é dura em contraponto aos sonhos que nutria enquanto vivia em clausura.


Além da trama cativante, emotiva e cuja mensagem de respeito e solidariedade se estendem a outros casos que envolvam preconceitos seja qual for a natureza, a produção ainda enche os olhos do espectador com belas imagens proporcionadas pelo apuro da fotografia, reconstituição de época impecável e iluminação delicada, além da minuciosa e trabalhosa maquiagem aplicada na protagonista. Quando a ação se passa em ambiente circense a obra ainda ganha um irresistível clima lúdico. Aliás, não seria loucura comparar Eva com um personagem de contos de fadas a julgar por sua caracterização e motivações. Todavia, seus problemas não se resolvem com beijos apaixonados ou vencendo feiticeiros. Seu problema é muito maior que vencer gigantes ou dragões e sim lutar por ideais que vão contra uma sociedade arcaica, egoísta e muito cruel com aqueles que julgam inadvertidamente como indignos de fazer parte de um grupo pretensiosamente seleto.

Drama - 117 min - 2016

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