NOTA 8,0 Embora suavize o quanto pode as feridas do nazismo, drama consegue emocionar e divertir de forma equilibrada e conta com elenco afiado e cativante |
O nazismo é uma das temáticas de
época mais exploradas pelo cinema. A intensa e controversa ditadura do alemão
Adolf Hitler já rendeu diversos filmes, cada qual abordando um viés diferente
seja por meio de um acontecimento específico, consequências de algum fato ou a
maneira como um grupo de pessoas ou até mesmo um único indivíduo vivenciou tal
período. Baseado no best-seller de Markus Zusak, em A Menina
Que Roubava Livros temos um modesto retrato da época pelos olhos
da esperta e sensível Liesel Meminger (Sophie Nélisse), ou melhor, a história
da garota está inerentemente atrelada às atrocidades do regime alemão e
curiosamente nos é contada por ninguém menos que a própria Morte (que se faz
presente pela voz soturna de Roger Allam no original). Sim, o espectro que
tantas boas almas levou por conta da guerra se interessou pela menina quando
veio buscar seu irmão mais novo durante a viagem que faziam rumo a um subúrbio
da Alemanha para serem adotados por uma nova família depois que a mãe fora
acusada e perseguida por comunismo. A popularmente chamada de "ceifadora
de almas" poupou a jovem certamente por ter sua curiosidade aguçada já que
ela surrupia durante o sepultamento do irmão um livro que o coveiro deixou
cair, uma espécie de manual para rituais funerários. Por que uma criança se
interessaria por tal leitura? A Morte então passa a acompanhar a trajetória de
Liesel desde sua chegada à rua Paraíso, de fato um local que parece transpirar
tranquilidade, mas seus moradores apenam tentam levar uma rotina normal, no
fundo vivem em constante clima de tensão já que nunca se sabe quando haverá uma
batida policial ou uma bomba pode ser lançada por lá. Em troca de dinheiro um
casal de meia-idade, adoradores do nazismo apenas de fachada, aceita dar asilo
à Liesel que curiosamente aos dez anos de idade ainda era analfabeta, porém,
demonstrava uma enorme vontade de saborear a descoberta das palavras. Essa é a
deixa para que Hans Hubermann (Geoffrey Rush), seu afetuoso pai adotivo, possa
estreitar laços com ela ensinando-a a ler e a escrever.
Já o relacionamento com Rosa
(Emily Watson), a mãe de criação, inicialmente não é tão amistoso, pois ela só
aceitou a garota com a garantia de que viria junto seu irmão para ajudá-la nas
tarefas domésticas. Apesar de ranzinza e durona, essa mulher entre um resmungo
e outro consegue demonstrar preocupação com Liesel, esta que revoltada com a
ideia imposta pelo regime nazista de que qualquer livro, independente de seu
conteúdo, deveria ser queimado começa então a surrupiar e a compartilhá-los com
seus amigos Max (Ben Schnetzer), um judeu que os Hubbermann acolhem e escondem
em seu porão por conta de uma dívida de gratidão com sua família, e Rudy (Nico
Liersch), o vizinho que a ajuda a se adaptar à escola e a nova vizinhança.
Enquanto o adolescente perseguido, mesmo a maior parte do tempo doente e
inerte, lhe incentiva a também aprender a escrever e o valor de uma verdadeira
amizade, com o outro garoto a pequena alemã se torna mais expansiva, tem com
quem trocar confidências e fica latente um clima de primeiro amor, mais por
parte dele que apesar das investidas tem seu sentimento ignorado inocentemente
pela pretendente. Apesar do título, curiosamente são poucos os livros que a
protagonista rouba e todos são oriundos da casa do prefeito. Na verdade os
furtos logo são descobertos por Ilsa (Barbara Auer), a primeira-dama que se
enternece pelo interesse da menina por leitura e oferece total acesso a sua
vasta biblioteca, embora ainda às escondidas para que seu marido não descubra.
O roteirista Michael Petroni tomou certas liberdades criativas para poder
condensar as quase quinhentas páginas da história original em pouco mais de
duas horas de filme como, por exemplo, omitir que Liesel e Rudy roubavam não só
a casa do prefeito e buscavam outros itens além de livros. Também foi alterada
a ordem de alguns acontecimentos, outros foram descartados, algumas ações foram
absorvidas por certos personagens a fim de se ter um elenco enxuto em cena, mas
a principal modificação foi a suavização no retrato dos horrores da guerra de
olho em uma fatia de público mais jovem. Fome, desemprego, humilhações e
sacrifícios acabam ficando em segundo plano na narrativa que se contradiz. Se a
intenção era conquistar espectadores mais novos, acostumados com agilidade, o
ritmo lento compromete tal objetivo, assim como a mistura de diálogos em inglês
(ou dublados) com alemão soa bastante incômoda.
Os amantes do livro certamente
devem reclamar das mudanças no enredo, mas elas são necessárias em qualquer
tipo de adaptação e ainda é preciso lembrar que o filme é a interpretação de um
grupo fechado de pessoas para um material imaginado por uma outra. É impossível
agradar a todos e apesar da sensação que o potencial da obra original não foi
explorado ao máximo, Petroni consegue emular o essencial da trama, como a
importância da palavra como instrumento de expressão e libertação,
principalmente em uma época de tanta manipulação e opressão política. O elenco
ajuda, e muito, a dar credibilidade ao
texto e a envolver o espectador com o melodrama. Nélisse, que venceu uma
acirrada disputa pelo papel-título, com sua sensibilidade e energia conquista
de imediato a atenção, assim como Liersch que contagia com sua espontaneidade.
Ambos consegue expressar com nitidez a vontade inerente a qualquer criança de
descobrir o mundo e ver tudo com um olhar mais brando, mesmo cientes dos
problemas que os cercam. Se a relação das crianças é cativante e convincente, o
mesmo não se pode dizer da amizade estabelecida entre Liesel e Max, com
passagens muito artificiais para justificar a extrema preocupação da garota com
o jovem. Já Rush e Watson estão perfeitos, mesmo interpretando papeis com
perfis pouco complexos. Ele como um homem doce e compreensível, com momentos em
que deixa aflorar seu espírito infantil, e ela com seu mau-humor e jeito
irônico, escondendo seu lado sensível, garantem cenas tocantes e por vezes
divertidas. Investindo rigorosamente seus esforços na ambientação, com direção
de arte, figurinos e trilha sonora meticulosamente concebidos, o diretor Brian
Percival, oriundo de séries e filmes para TV, não quis arriscar e realizou uma
obra convencional, bem aos moldes de A
Vida é Bela e O Menino do Pijama
Listrado. Até nos momentos que exigiam manchar a tela com sangue ele o usou
com extrema parcimônia para não chocar visualmente, afinal o contexto da época
já e suficientemente traumático. Com esse cuidado, o maior deslize de A Menina Que Roubava Livros é justamente se
escorar na inocência de sua protagonista que parece feliz e conformada demais
com sua situação. A morte do irmão, o afastamento da mãe, a adaptação a uma
nova rotina e conviver com o perigo iminente diariamente. São muitos os fardos
para uma criança encarar com tamanha tranquilidade, mas nada que comprometa a
emoção almejada.
Drama - 135 min - 2013
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