NOTA 7,0 Apesar do título e inocência do enredo, longa é baseado em uma tocante história real e propõe reflexões e fatos históricos |
Um cachorrinho meigo e um
garotinho estampam a capa do DVD cujo título é o sugestivo As Aventuras de Bobby.
Eis aí mais um típico filme para divertir a criançada e dar um pouco de sossego
aos adultos enquanto elas estão entretidas. Bem, na realidade ta aí um produto
que vem para desmitificar preconceitos. Sem falar uma palavra sequer,
felizmente, o cãozinho é a arma para fisgar o público infantil, porém, a
essência da história pode ser tediosa aos pequenos, principalmente por não ter
muito humor ou aventura. A base do roteiro de Richard Mathews e Neville
Watchurst traz certos pontos mais comuns ao universo dos adultos, tais como
poder e dinheiro, mas por outro lado o filme pode ser inocente demais para o
público mais velho, ainda que traga mensagens universais como fidelidade e solidariedade.
De qualquer forma, o diretor John Henderson, também co-roteirista, consegue
equilibrar de maneira satisfatória elementos que conjugam bem com estes dois
universos distintos, resultando em um agradável filme-família. Logo no início
acompanhamos o cachorrinho Bobby salvando seu dono, o vigia noturno John Gray
(Thomas Lockyer), do ataque de um touro e sendo aplaudido pelos populares que
elogiam a coragem e a força de um bichinho tão pequeno e aparentemente frágil.
Ele é o xodó também de Ewan Adams (Oliver Golding), garotinho que, embora muito
inteligente, está desperdiçando sua infância trabalhando no moinho do arrogante
Sr. Duncan Smithie (Sean Pertwee), um empresário mau caráter que quer lucrar
explorando seus funcionários com jornadas e condições de trabalho proibitivas.
Gray gostaria muito de ajudar o menino a mudar os rumos de sua vida, assim como
o Reverendo Lee (Greg Wise) que há tempos tenta com seus sermões mudar os
pensamentos provincianos da população de Edimburgo, na Escócia, também
conhecida como a Cidade Velha. Gray estava com a saúde debilitada e veio a
falecer antes de ver qualquer tipo de mudança, mas conseguiu ter tempo para dar
à Ewan um livro sobre homens que ajudaram a mudar a História do mundo, um
incentivo para o menino procurar fazer o que ele não conseguiu. Bobby sentiu
muito a perda do dono e diariamente, inclusive a noite, fugia para o cemitério
e permanecia próximo ao túmulo. James Brown (James Cosmo), o zelador do local
que se encontra nas terras da igreja, bem que tentava afastá-lo seguindo as
normas de que animais eram proibidos, mas o cãozinho sempre voltava.
Certa vez, Smithie visitou a
igreja, pois como pessoa influente deveria manter relações amistosas com a
religião e vez ou outra fazer alguma caridade, e se irritou com a presença de
Bobby, algo justificado pelo Reverendo como uma necessidade para acabar com os
ratos. Levemente afrontado por ter recusado o seu pedido de sacrificar o
animal, que chega a urinar em seus pés, o empresário sente que está sendo
vítima de chacotas pela população que pela primeira vez via sua soberania não
surtir efeito. Eis que cai do céu a notícia de que Maureen Gray (Gina McKee), a
viúva do vigia, decidiu ir embora dá cidade levando o cachorro. O tempo passa e
Ewan e Brown se entristecem, os ratos começam a se multiplicar e o próprio cão
demonstra estar infeliz, assim sua dona decide libertá-lo para voltar à
Edimburgo. No tradicional e epifânico momento desse tipo de filme, Bobby vence
os desafios que surgem na terra e na água e após muitos dias de viagem sozinho
chega ao seu destino sendo ovacionado pela população como um herói e adotado por
Ewan. Tal retorno soa para Smithie como uma ameaça, um modo de dizer que sua
palavra não é mais uma ordem, assim ele parte para o ataque literalmente.
Primeiro tenta sumir mais uma vez com o bicho, mas após várias tentativas
falhas resolve jogar pesado e atacar diretamente Ewan e sua mãe, Ada (Kirsty
Mitchell). Para os mais grandinhos e com o mínimo de cultura, a partir de então
o longa perde um pouco de sua inocência e os remete ao passado, aos
ensinamentos das aulas de História. A trama se passa em 1858, época de
reviravoltas. Após a Idade Média, época em que religiosos e governantes
mantinham estreitas relações e cometiam abusos e atrocidades para manter suas
soberanias, os anos seguintes foram marcados por transformações. A Igreja demonstrava
se preocupar mais com os interesses de seus fiéis e os poderosos passaram a ver
pouco a pouco seu poder de influência se esvair. Aqui a figura do poder é o
empresário Smithie, a quem praticamente toda a cidade devia respeito pelos anos
que seu moinho gerou emprego e o mínimo de renda, e também é representada pelo
Sr. Johnson (Ronald Pickup), o dono do orfanato local que também tratava as
crianças como prisioneiros. Um simples
fato pode ser o estopim de uma catástrofe. Pode parecer pouco crível que a
recusa do sacrifício de um animal possa ferir tanto o orgulho de uma pessoa,
mas infelizmente as coisas são assim mesmo, ainda mais em tempos em que os
poderosos estavam se adaptando aos novos tempos, experimentando o sabor do
declínio e das revoltas populares.
Vendo por esse prisma
histórico-cultural, a produção surpreende pela coragem de introduzir assuntos
tão controversos ao universo infantil, o que justifica a forma superficial com
que são tratados, ainda que Henderson não faça questão de esconder alguns pontos
críticos que são perfeitamente compreendidos pela molecada. Só pelo fato do
Sr. Smithie ser assimilado como um vilão sem a necessidade de uma
caracterização estereotipada já vale o esforço do diretor que se apoia em uma
bela cenografia, figurinos e fotografia para transportar o espectador à outra
época. Claro que não é uma superprodução, porém, cumpre seu papel não só como
entretenimento, mas também como fonte de cultura. Apesar de boa parte da
narrativa surpreender com situações que não eram previstas, é óbvio que o
cãozinho Bobby é a estrela e terá seus momentos de ser alçado a herói. Depois
de várias provas de coragem, inteligência e de amor e lealdade do cachorrinho à
Ewan, Smithie tira a sua última carta da manga, uma lei que proíbe a circulação
na cidade de animais sem registro. Como seu primeiro dono faleceu, quem iria
reconhecê-lo e pagar o imposto previsto? Na reta final surge o veterano Christopher
Lee na pele do Lorde Provost de Edimburgo a quem Ewan recorre para fazer valer
o consenso de que se o animal não tem dono registrado ou vivo ele pode ser
adotado por qualquer um e graças a esse episódio o garoto e toda a população da
cidadezinha compreendem que há muito que se fazer para mudar os rumos do local.
Quem achou que a premissa é muito semelhante a de Sempre ao Seu Lado, drama baseado em fatos reais em que o
personagem de Richard Gere quando morre também deixa um cãozinho inconsolável
que diariamente ia até a estação de trem esperá-lo como de costume, vale como
curiosidade saber que antes de Hachiko emocionar a todos com sua devoção e
ganhar uma estátua em espaço público no Japão (o conto original foi adaptado
para a versão de cinema americana) foi Bobby quem teve tal honraria. Sim o
protagonista deste filme existiu de verdade e por 14 anos guardou o túmulo de
seu dono, ganhando uma fonte em sua homenagem um ano depois de sua morte que
até hoje é um dos pontos turísticos de Edimburgo. Sua história, incluindo as
desavenças com um poderoso empresário e seu sacrifício sendo levado a julgamento
no tribunal, já foi contada em vários livros e ganhou até outra versão em
live-acton, Meu Leal Companheiro,
pelos estúdios Disney nos anos 60. Estão vendo como as aparências enganam? Quem
diria que o título As Aventuras de Bobby podia superar expectativas.
Aventura - 105 min - 2005
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