Nota 9 Com tema universal e atemporal, obra francesa trata com certa leveza situação espinhosa
Uma das reclamações mais frequentes dos brasileiros é quanto ao desemprego, um problema que já dura várias décadas, e isso fez com que boa parte da população depositasse suas esperanças no tal sonho americano, a doce ilusão de que a vida nos EUA seria mais fácil e com emprego garantido. Boa parte dos sonhadores se decepcionou quando comprovou que o mercado de trabalho americano é tão acirrado quanto o brasileiro e então voltaram seus olhares para outros países, principalmente os europeus, mas a situação não difere muito como mostra o longa francês O Corte, drama com pitadas de humor negro dirigida pelo grego Costa-Gavras. O cultuado cineasta não tem medo de criar polêmicas e cutucar problemas de alcance universal, assim suas obras, aparentemente complexas, conseguem dialogar perfeitamente com os mais diferentes públicos, independente do país que escolha para ser o cenário de suas tramas. Neste caso o cineasta escolheu falar sobre o mundo capitalista através da ótica de um desempregado. Bruno Davert (José Garcia) é um competente engenheiro da indústria de papeis que trabalhou em uma mesma empresa por mais de uma década, mas nem toda sua experiência e dedicação foram suficientes para livrá-lo da lista de cortes. Com um currículo invejável, ele acredita que não terá problemas para conseguir um novo emprego, no entanto, quando se dá conta, já está há dois anos em casa esperando algum contato de trabalho.
Além da vergonha de não ter uma ocupação e se tornar extremamente antissocial, pesa o fato dele e dos filhos Maxime (Geordy Monfils) e Betty (Christa Theret) estarem sendo sustentados por sua esposa Marlène (Karin Viard) que se divide entre dois empregos. A situação chega a um nível desesperador quando ele assiste a um DVD promocional de uma empresa de papel concorrente a qual trabalhava e sente uma raiva incontrolável de Raymond Machefer (Olivier Gourmet), engenheiro porta-voz da companhia que faz exatamente o serviço que Davert era especialista, ou seja, em sua mente perturbada pelo ócio esse homem estaria ocupando uma vaga que julgava ser por direito sua. Ele então fica obcecado pela ideia de que a única forma de conseguir um emprego é focando sua atenção em seus concorrentes potenciais, assim anuncia uma vaga fictícia e tentadora de emprego em uma agência de talentos e rapidamente muitos se candidatam e o desempregado consegue ter acesso ao currículo detalhado de todos eles, incluindo fotos nas quais os profissionais procuram demonstrar credibilidade através da imagem que passam, quesito em que Davert sentia-se em desvantagem, além da falta de intimidade com novas tecnologias que também seria um empecilho. Após analisar toda a papelada, Davert chega a conclusão de que a maioria dos candidatos são ignorantes e presunçosos e apenas cinco deles possuíam currículos comparáveis ao seu. Eis que então ele tem uma ideia um tanto bizarra: literalmente matar a concorrência.
O longa na realidade segue até a metade na base do flashback. A introdução mostra o protagonista chegando atarantado em um quarto de hotel numa noite chuvosa e disposto a confessar seus atos criminosos usando um gravador particular. Na ocasião ele acabara de fazer sua terceira vítima e constatava que seu plano era mais difícil de por em prática do que imaginava, mas já que começou era preciso acabar. Henri Brich (Marc Legein), Edouard Rick (Phillippe Bardy) e Etienne Barnet (Yvon Back) foram os primeiros eliminados, mas ainda faltava dar um sumiço em Rolf Krantz (Michel Carcan) e em Gérard Hutchinson (Ulrich Tukur), além do próprio Machefer que embora estivesse trabalhando poderia estar procurando mudar de empresa ou se precavendo caso fosse uma nova vítima dos cortes empresariais. Drama, comédia ou suspense? Em qual gênero essa obra se encaixa? É até difícil escolher um já que a premissa atende bem as expectativas de todos eles. É fato que compreendemos o drama do protagonista e no final das contas até nos divertimos com suas peripécias para conseguir acabar com seus concorrentes. Com sutis trapalhadas, expressões faciais marcantes e deparando-se com situações que não previa, Davert dificilmente é visto como um assassino, pelo contrário, é muito fácil a identificação do público com o personagem.
Davert não é uma pessoa má, somente busca seu lugar ao sol por meios torpes utilizando-se da máxima que diz que o mundo é dos espertos. É cruel pensarmos que uma pessoa pode tirar a vida da outra por puro egoísmo e para manter um padrão de vida elevado como é o caso. Se pararmos para pensar rigorosamente sobre o assunto é óbvio que o longa se revelará uma obra amoral. O jeito é ver tudo como uma grande brincadeira com fundinho de verdade já que Gavras é irônico do início ao fim, talvez usando seu protagonista como alter ego. Entre tantos pensamentos condenáveis ou fofoqueiros a respeito de suas vítimas, é inegável que ele também dispara frases geniais e que de certa forma extravasam aquilo que muitos dos espectadores podem sentir em relação ao mundo capitalista. Baseado no romance de Donald E. Westlake, o enredo, desenvolvido pelo próprio diretor em pareceria com o roteirista Jean-Claude Grumberg, leva a extremos um dos conceitos do capitalismo: para demarcar território é preciso eliminar a concorrência. Uma boa sacada do filme é mostrar alguns contrapontos. Enquanto o protagonista não aceita a ideia de que é preciso encarar a realidade e procurar trabalhos muito aquém de suas reais qualificações, duas de suas vítimas desceram do salto e foram batalhar pelos seus sustentos em empregos populares como atendente de restaurante ou de loja de roupas, mas ainda assim acreditando que um dia poderiam voltar a ocupar um bom cargo em uma grande empresa.
Intercalando as incursões criminosas de Davert, a narrativa ainda procura prender a atenção explorando o núcleo familiar do protagonista. A família não sabe do plano dos assassinatos, mas está claramente abalada com a mudança de comportamento do patriarca. Marlène começa a desconfiar dos constantes compromissos do marido (desculpas para espionar as vítimas e estudar a melhor forma de executá-las) e resolve partir para a terapia de casal. O filho adolescente do casal, por rebeldia ou munido de boas intenções, se mete com roubos de programas de computador e a entrada da polícia na casa do engenheiro nesse momento seria algo impensável. Davert já havia sido sondado a respeito das misteriosas mortes que estavam acontecendo com homens com perfis profissionais semelhantes ao seu, mas fica no ar a dúvida se os policiais estavam desconfiando dele ou apenas preocupados com sua segurança. No fundo, a temática de O Corte além de universal é também atemporal. A modernidade, que está intimamente ligada ao avanço capitalista, cada vez mais corrompe os seres humanos a ponto de perderem a razão e praticamente se comportarem como animais para sobreviverem. Trocando em miúdos, para alcançar seus objetivos, o homem não mede mais esforços e, seguindo leis primitivas, sobrevivem os mais fortes ou no caso aquele que é mais esperto.
Drama - 122 min - 2005
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