NOTA 3,5 Texto teatral a respeito das relações inter-raciais tem boas intenções, mas torna-se estranho em sua versão cinematográfica |
Nas regiões africanas são muito
comuns os conflitos e os preconceitos gerados pelas disputas entre negros e
brancos, problemas que já estão enraizados na cultura local infelizmente. O
regime do Apartheid é um dos casos mais notáveis e conhecidos de descriminação
racial de toda a História mundial, política que apostava em relações inter-raciais
que de certa forma colocavam os brancos em um patamar acima dos negros, aquela
velha ideia de que o branco foi feito para mandar e os negros para obedecer. É justamente
nessa discussão que está centrada a narrativa de Um Mestre em Minha
Vida, drama passado na África do Sul na década de 1950 com direção de
Lonny Price que optou por centrar as ações boa parte do tempo em um único
cenário e praticamente com dois atores de idades antagônicas em cena travando
diálogos fortes carregados de explosões emotivas e mensagens. Harold Ballard
(Freddie Highmore), ou simplesmente Hally, é um adolescente branco pertencente
a classe média alta que cresceu na companhia de Sam (Ving Rhames) e Willie
(Patrick Mofokeng), dois homens mais velhos e negros que trabalham como garçons
na casa de chá de seus pais. Tal interação poderia indicar uma tolerância maior
entre as raças, mas na realidade os empregados viviam em um sistema de
segregação racial no qual as pessoas de pele escura até poderiam ter boa parte
dos direitos dos caucasianos, como trabalhos dignos remunerados e com carga
horária estipulada, mas para tanto deveriam residir isolados em um mundo
particular. Os negros eram obrigados a construir suas casas em lugares
afastados dos centros das cidades e necessitavam até de documentos especiais
para poderem atravessar uma espécie de fronteira para poderem ir trabalhar. Apesar
das dificuldades, os garçons até que lidam bem com a situação procurando serem
trabalhadores exemplares e levando a vida com otimismo e bom humor,
transmitindo mensagens positivas a seus semelhantes e ensaiando seus passos de
dança, a atividade que renova a energia da dupla. Contagiado pelo modo sadio
como os empregados levam e veem a vida, Hally acabou se acostumando a chegar da
escola e ir direto para a casa de chá para poder compartilhar seus problemas,
ouvir os conselhos dos amigos e se divertir com suas histórias de vida, uma
maneira que ele encontrou para superar os problemas do dia-a-dia.
Hally não gostava muito da
escola, principalmente porque seu relacionamento com os colegas de sala não era
dos melhores, e aparentemente o garoto tinha receio que seu pai voltasse para
casa, um idoso adepto de piadas preconceituosas que não enxergava que ele
próprio estava em condições de se tornar vítima de chacotas. Além de já ser
alejado de uma perna, mais uma vez ele se encontrava internado no hospital por
conta de uma queda. Pois é justamente um telefonema da mãe avisando que voltará
para casa na companhia do marido que serve como estopim para Hally mudar
bruscamente seu comportamento com Sam e Willie. O preconceito que estava
adormecido no adolescente volta a tona de maneira explosiva e ele não poupa
seus amigos de ofensas e julgamentos, reminiscências do tempo de convivência
com seu pai. Curiosamente, quando o filme atingiria seu clímax o desinteresse
deve tomar conta do espectador. A relação afetuosa construída até então entre
estas pessoas de universos e idades tão diferentes, mas ainda assim encontrando
pontos semelhantes para estabelecerem uma amizade, estava sendo apresentada de
modo satisfatório, mas repentinamente a melancolia se transforma em inflamados duelos
verbais, principalmente entre Hally e Sam. Os diálogos deste ponto em diante
ganham contornos de discussões, como se fosse um chefe branco tentando
descontar sua raiva e problemas em cima do empregado negro, mas na melhor das
hipóteses os discursos também podem ser interpretados como uma conversa
enriquecedora entre um homem mais velho e com conhecimento de vida e um garoto
mimado que ainda tem muito a aprender. Enquanto Sam mostra-se paciente com o
filho dos patrões tentando manter uma conversa civilizada, procurando não
transparecer sua tristeza ao ouvir tantos desaforos de uma vez só, por outro
lado Hally tenta extravasar todas as suas frustrações demonstrando
autoritarismo e descontando seus sentimentos no garçom usando a desculpa que os
ensinamentos preconceituosos de seu pai têm sim validade, mas ele próprio se
enrosca para apresentar justificativas. No fundo ele despeja sua amargura em
cima do amigo por ter a compreensão de que ele não revidaria e tampouco
guardaria mágoas. É fato que geralmente descontamos nossas frustrações em cima
de pessoas de nosso convívio íntimo, algo como o filho que briga com a mãe por
conta de problemas na escola por saber que o amor incondicional dela colocaria
panos quentes na situação, porém, esquecemos que de qualquer forma na hora das
discussões é que as verdades são ditas e geralmente fazem grandes feridas.
Imagine o quanto deve ser
difícil para alguém que já sofreu tanto com preconceito escutar ofensas de uma
pessoa que se estima. Ouvir calado ou rebater com a mesma moeda? Muitos
optariam pela segunda opção, mas um negro fazer isso em uma época apegada a
tantas restrições em meio a uma sociedade hipócrita era uma ousadia e tanto.
Estamos tão acostumados a revidar no mínimo com agressões verbais que soa
estranho a maneira serena com que Sam tenta levar a situação, mas a briga
mostra justamente onde termina a linha que separa a amizade entre raças ou, em
outras palavras, o envolvimento entre quem manda e quem obedece. Baseado na
peça teatral “Master Harold and the Boys”, de Athol Fugard, o roteiro de Nicky
Rebelo mantém o espírito de espetáculo intimista ao centrar boa parte da
narrativa dentro do salão da casa de chá, um clima de certa claustrofobia
intensificado pela tórrida chuva que cai do lado de fora. O problema é que
embora os diálogos sejam bem construídos e com conteúdo edificante é um pouco
difícil embarcar no ritmo do último ato. A mudança repentina no comportamento
do adolescente impacta negativamente o espectador que vinha se envolvendo com a
bela amizade construída com Sam. É previsível que as raízes de sua
instabilidade emocional estão ligadas à sua relação com os pais, principalmente
pelo fato dele próprio ter que cuidar do pai deficiente físico e alcoólatra
enquanto a mãe trabalha, mas fica um pouco forçado acompanharmos a sua “lavagem
de alma” soltando o verbo sobre uma pessoa que só quer o seu bem. Outro problema
é que Willie acaba ficando um personagem reduzido a nada nesse fogo cruzado de
palavras, uma espécie de jogral inflamado, podendo sua participação ser
resumida a algumas poucas cenas em que ele fala sobre os ensaios para um baile
e os problemas que enfrenta com sua parceira. O resultado final deixa um sabor
amargo de insatisfação, de que um bom tema foi desperdiçado. O único saldo
positivo de Um Mestre em Minha Vida está nas sequências
em que Hally empina pipa com Sam, cenas que mais tarde ajudarão a dar uma lição
no garoto, tornando-se obviamente a mensagem de moral de um filme que prova que
nem sempre a intelectualidade teatral consegue ser adaptada adequadamente para
uma obra cinematográfica. Faltou infusão nesta mistura de estilos.
Drama - 87 min - 2010
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