NOTA 8,0 Drama denuncia a exploração do trabalho e os perigos que rondam cidade que prefere abafar polêmicas em nome de interesses financeiros |
Embora hoje muitos tenham acesso a tecnologia de ponta, o que indicaria
bons níveis econômicos e culturais, e a mídia venda a ideia que o mundo
tecnológico abrange as pessoas em níveis semelhantes em todos os países, é
extremamente necessário vez ou outra pararmos para pensar que enquanto você e
seus amigos se divertem com tablets, iphones e tantas outras bugigangas
moderninhas ainda existem milhares de pessoas espalhadas por aí que vivem em
condições precárias e nem mesmo podem ter um aparelho de TV. O pior de tudo é
constatar que são justamente estas pessoas a margem da sociedade ideal que
trabalham na fabricação dos bens de consumo que a elite consome. É fato que
poucos hoje em dia acreditam em contos da carochinha, mas ainda assim há muitos
poderosos querendo fazer fortunas jogando para debaixo do tapete as sujeiras que
envolvem o mundo dos negócios e explorando a mão-de-obra de grupos menos
favorecidos intelectualmente e em termos financeiros. É em torno desse jogo de
interesses desprovido de direitos básicos aos seres humanos que gira a trama de
Cidade
do Silêncio, um providencial filme-denúncia que embora tenha tido como
primeira vitrine o Festival de Berlim e seja protagonizado por Jennifer Lopez e
Antonio Banderas, chegou ao Brasil diretamente para locação e não causou
barulho, o que é até curioso visto que, guardadas as devidas proporções, o tema
principal bate de frente com situações contraditórias e vexatórias que
encontramos no nosso país, escândalos que envolvem até mesmo marcas renomadas
que exploram trabalhadores brasileiros e também de outros países que tentam a
sorte por aqui. O filme roteirizado e dirigido por Gregory Nava escancara
alguns dos podres que existem por trás do chamado Tratado de Livre Comércio.
Baseado em fatos reais, ou melhor, sintetizando em uma mesma história centenas
de casos semelhantes, o longa revela que o famoso acordo que permite que
empresas do mundo inteiro montem fábricas na região de fronteira entre o México
e os EUA não é tão próspero quanto parece ser. A cidade de Juarez tem sua
economia praticamente toda baseada nos lucros obtidos de empresas fabricantes
de equipamentos eletrônicos para exportação. Além da isenção de impostos, os
empresários têm como chamariz o fato da mão-de-obra- ser muito barata, basicamente
composta por mulheres latinas, muitas delas adolescentes que chegam a deixar
suas famílias em outros países para conseguirem um emprego que lhes ofereça
algum tipo de estabilidade financeira.
As mulheres que aceitam atuar na produção das fábricas são remuneradas
com baixos salários e trabalham quase que em regime de escravidão,
sujeitando-se a longas e abusivas jornadas de trabalho diárias por não terem
outra opção ou até mesmo por ingenuidade, porém, os piores momentos de suas
rotinas se encontram fora das empresas, principalmente a noite quando precisam
aguardar para embarcar nas lotações que deveriam levá-las para suas casas, mas
as vezes o trajeto se resume a uma viagem sem volta. Sim, há várias décadas
estão sendo colhidos relatos e denúncias sobre mulheres desparecidas, outras
brutalmente estupradas e mortes na cidade mexicana, problema que já foi
abordado em outros filmes como A Virgem
de Juarez que, embora ligeiro, não só relaciona as mortes ao falso
progresso da região como também coloca mais lenha na fogueira aliando o
problema ao tráfico de drogas e o culto exagerado à religião. No caso do longa
de Nava, a opção para retratar esta denúncia social foi acompanhar uma garota
em específico, Eva (Maya Zapata). Como boa parte do público que se diz
“antenado” provavelmente já ouviu falar sobre os problemas que ocorrem na
fronteira entre o solo mexicano e o americano, o diretor não faz rodeios e
parte logo para o que interessa nos posicionando a respeito da vida da jovem de
16 anos. Recém-saída de seu turno, ela primeiro pechincha uma boneca na feira
para presentear a irmã, revelando que seu poder aquisitivo não é alto, mas seu
carinho pela família é grande, excluindo assim qualquer saliência da personagem
que poderia justificar a abordagem por um homem. Depois ela segue para pegar o
ônibus como tantas outras colegas, mas quando se dá conta está sozinha na
condução e não reconhece o caminho que o motorista está fazendo, este que logo
deixa a direção para se aproveitar da garota com a ajuda de outro criminoso.
Seus agressores pensam que ela está morta e a enterram em uma região
descampada, porém, ela esta viva e consegue escapar. Agora ela é a prova viva
dos crimes que são encobertos pelos interesses das grandes corporações e também
é a matéria que a jornalista Lauren Adrian (Lopez) tanto aguardava. Quando
soube das condições desumanas em que as mulheres trabalham em Juarez, George
Morgan (Martin Sheen), editor-chefe de um famoso jornal de Chicago, decide
enviar a repórter para a fronteira para fazer uma matéria especial. A moça vai
a contragosto, mas caso faça um bom trabalho poderia ter a chance de ser
correspondente estrangeira no periódico. Ao chegar a seu destino, ela se
empolga ao saber mais detalhes sobre os casos de exploração e mortes com um ex-colega,
Alfonso Diaz (Banderas), que agora é editor de um jornal local e discorda
veementemente das versões dadas como oficiais sobre os atos de violência,
simplesmente definidos como casos isolados e sem o menor traço de ligação uns
com os outros. Violência doméstica, uso de álcool e drogas e mulheres
descuidadas na hora e lugar errado são as desculpas mais comuns.
Quando Lauren conhece o caso de Eva decide que a garota será a
personagem principal da sua matéria e decide ajudá-la a se esconder até que
chegue o dia em que ela vá depor no tribunal e finalmente a matéria possa ser
publicada. A decisão da jornalista tem um fundo emocional. Seus próprios pais
foram vítimas de exploração no trabalho e brutalmente mortos, o que causa uma
identificação imediata com o caso da mexicana, ainda que seus ideais de vida
revelem o abismo que existe entre elas. Por exemplo, além da questão
financeira, Eva deseja formar uma grande família como sua mãe e se contentaria
em ter um emprego que lhe desse o mínimo de dinheiro e proteção e não
compreende como Lauren prefere abrir mão da maternidade para investir na
carreira. O interessante deste longa é verificar a validade do ditado que diz
que onde há fumaça há fogo, no caso, um incêndio gigantesco e com diversos
focos. Conforme Lauren e Diaz investigam o caso de Eva, muitos outros episódios
semelhantes vão sendo levantados e entra em jogo a idoneidade da polícia, o
envolvimento do tráfico de drogas e de órgãos humanos, a exploração sexual e
sobra até para os governos mexicano e americano que poderiam (alguém duvida?)
colaborar para que os crimes fossem abafados para não atrapalhar as negociações
para manter e atrair multinacionais na fronteira entre os países, tanto que o
número de mulheres desaparecidas na versão oficial é drasticamente reduzido,
embora mesmo nessas condições a soma já seja assustadora. É revoltante também
observar na reta final como o campo jornalístico também não preza pela verdade
e tampouco tem consideração pelos seres humanos, interessando muito mais um
contrato milionário de publicidade, mesmo que proveniente de investidores com
ficha declaradamente suja. Compilando em pouco menos de duas horas uma
importante e impactante seleção de denúncias, talvez o único defeito do longa
seja a personagem Teresa (Sônia Braga), uma mulher que abriga Eva durante os
dias que antecedem sua denúncia perante o juiz. Não fica bem claro se ela tem
um abrigo próprio para mulheres sob ameaças e existe certa ambiguidade em seu
perfil que por vezes nos deixa com a pulga atrás da orelha se ela trairia a
confiança de Lauren, um bom gancho que foi desperdiçado. Cidade do Silêncio pode passar a
falsa impressão de que é um veículo premeditado para solidificar a imagem de
Jennifer Lopez como atriz dramática, ainda mais porque o diretor é o mesmo que
lhe deu o papel-título de Selena,
cinebiografia trágica de uma cantora americana pouco conhecida no Brasil, mas
não se engane. A pop star se sai bem e não consegue se sobressair ao conteúdo
da obra, tanto que por seu empenho (ela também é produtora) recebeu o prêmio
“Artistas pela Anistia”, honra dada a personalidades engajadas em questões
sociais. Aliás, como já dito, mesmo com seu nome envolvido o filme não
conquistou público e mesmo antes das filmagens serem iniciadas a produção
sofreu com a indiferença e o repúdio de muitos, obrigando a equipe a trabalhar
sob proteção de segurança reforçada devido as diversas ameaças e nem mesmo a
cidade Juarez pôde ser usada como cenário. Ainda alguém tem coragem de colocar
panos quentes nestas situações? Sim, infelizmente, mas o filme está aí para
revelar um pouco de todo esse caos, ainda que revele um pouco de receio em
sangrar totalmente as feridas.
Drama - 112 min - 2006
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