Nota 8 Invocando antiga tradição africana, obra conta com atuações acima da média para o gênero
O cinema do início da década de 2000 foi marcado por uma grande safra de filmes de terror baseados em produções de origem oriental ou então por refilmagens de sucessos arrepiantes da própria fábrica de Hollywood, além das inevitáveis continuações. Ao contrário de outros modismos que chegaram a durar quase uma década, o gênero de horror não conseguiu se segurar em pé com tais armas, ou melhor, as usou com tanta intensidade e rapidez que logo o público se cansou. Bem, pelo menos os fantasminhas de olhinhos puxados ou com longos cabelos cobrindo o rosto tiveram uma vida relativamente curta, obviamente sempre sobrando um ou outro remanescente. Em meio ao marasmo deste cenário, eis que surge um lampejo de esperança para o campo do horror, um daqueles títulos que aparentemente são apenas mais um no meio da multidão, mas que surpreendem positivamente. A Chave Mestra representou um importante passo de Kate Hudson em sua carreira. Mesmo com poucos títulos até então no currículo, já era possível enxergar nela o semblante de típica mocinha romântica, porém, ela quis fazer diferente da mamãe Goldie Hawn e não desejava virar sinônimo de um gênero específico. Bem, o tempo passou e ela acabou virando mesmo um nome super requisitado para produções água-com-açúcar, mas não se pode negar que ela tentou trilhar outros caminhos.
Caroline Ellis (Hudson) é uma enfermeira que acompanha pacientes terminais e não se conforma com o péssimo tratamento oferecido aos idosos. Abalada com a recente morte do pai, o qual não pôde ajudar por estar ausente, a garota decide se dedicar a apenas um único paciente de forma a lhe oferecer o máximo de cuidado possível, talvez uma forma de se penitenciar pela culpa que sente. Agora ela está de mudança para New Orleans, onde irá cuidar de um senhor inválido, Ben Devereaux (John Hurt), que vive em um isolado e decadente casarão com a esposa Violet (Gena Rowlands), esta que inicialmente não concorda com a presença da moça na casa. Contudo, ela aceita os conselhos do advogado Luke Marshall (Peter Sarsgaard), o responsável por cuidar dos problemas legais do casal e que também ajudará Caroline a se adaptar a nova rotina. Ela inclusive ganha uma chave mestra para que possa ter livre acesso a todos os cômodos da casa, exceto um estrategicamente escondido. A jovem, já desconfiada das atitudes e estranhos hábitos dos patrões, como a proibição de espelhos em qualquer lugar da casa, quando descobre a tal porta misteriosa toma coragem e a abre. O sótão está repleto de quinquilharias e materiais misteriosos ela então descobre que justamente naquela casa, décadas antes, eram realizados rituais de magia negra conhecidos como hudu organizados pelos antigos empregados da casa, conhecidos como Papa Justify e Mama Cecile. A enfermeira então investiga a fundo as raízes desses cultos e do passado do casarão como forma de se proteger de Violet que aparentemente tem tudo a ver com o estado vegetativo de Ben que se encontra preso a uma cadeira de rodas e sem poder falar por causa de um derrame.
A premissa é bastante interessante assim como a condução da narrativa que consegue deixar o espectador angustiado com uma atmosfera pesada e situações bem amarradas. A trama roteirizada por Ehren Kruger, mas os créditos são divididos com o também diretor Iain Softley que não perdeu a chance de dar seus pitacos no texto. O roteiro dá um gás ao batido tema da casa mal assombrada ao evitar os clichês dos filmes de fantasmas. Quer dizer, é claro que existem os recursos sonoros e a trilha sonora mais alta em momentos estratégicos e um ou outro vulto suspeito, mas as forças do texto se concentram em deixar cada vez mais latente que o mistério do casarão tem a ver com a energia negativa que ela exala, fruto dos atos de feitiçaria que deixaram a atmosfera do lugar extremamente carregada. A parte técnica neste caso ajudou bastante. A pouca iluminação dos ambientes, os móveis datados, o jardim mal tratado da casa e até uma região pantanosa, são pequenos detalhes que ampliam a sensação de que a residência é cercada de baixo astral. Ainda que o clímax seja numa noite chuvosa, não são raros os momentos em que o exterior da casa é flagrado sob a forte luz do sol, como na sequência em que Violet revela boa parte do passado do local para Caroline, fugindo assim da mesmice de que todo filme de horror que se preze necessita de uma nuvem negra constante cobrindo o palco das ações.
Além da perfeita sensação de isolamento em que os personagens vivem, a construção da ambientação foi fundamental para transformar o casarão não apenas em um cenário necessário, mas sim em praticamente um personagem. Aparentemente inanimado, o local parece ganhar vida pouco a pouco conforme Caroline vai descobrindo os segredos que suas paredes escondem. É aí que Softley dá mais uma cartada certeira. Ele foge do clichê de possíveis assassinatos que deixariam almas sofredoras presas eternamente à residência, ou melhor, encontrou uma forma mais original de apresentar tal viés. A região de New Orleans, localizada na região sul dos EUA, é uma terra marcada por um histórico a respeito da discriminação racial. Os rituais de hudu praticados pelos então empregados negros poderiam ser encarados como uma maneira desse povo manter suas raízes e um pouco de sua dignidade exaltando sua cultura, porém, tão logo as sessões de feitiçarias eram descobertas os serviçais eram condenados imediatamente à morte. Tais passagens são apresentadas em flashbacks caprichados com imagens que diferem totalmente da parte contemporânea da narrativa. Em tons de preto-e-branco, aspecto de filmagem caseira e sonorização sinistra, o passado macabro é revelado de forma surpreendente. Todo o clima de tensão é construído com muita cautela, mas para os escolados em trabalhos desse tipo, fica óbvio que os espíritos dos negros executados na casa é que comandam as ações negativas que envolvem os moradores do presente. Será mesmo?
Na linha de O Sexto Sentido e Os Outros, uma bem-vinda reviravolta na reta final de A Chave Mestra faz o espectador repensar tudo o que viu. A frase utilizada para a publicidade da obra, "temer é acreditar", ganha então total sentido. A protagonista acredita nas forças negativas do casarão de tal forma que fica praticamente impossível para o público questioná-la do contrário. Isso para quem se deixar se envolver pela narrativa, obviamente. A partir de então qualquer detalhe pode ter algum significado e Softley usa o poder da fotografia para captar o máximo de elementos possíveis para causar impacto. Além disso, ele usa sua câmera para filmar ângulos inusitados, como tomadas dos personagens de baixo para cima ou o inverso, como forma de acentuar a sensação de que sempre há algo à espreita. Deixando de lado os sustos fáceis e a gritaria tão comuns às produções de suspense e terror, esta obra é um bom híbrido destes dois gêneros que no conjunto possui muito mais pontos positivos do que negativos, embora possa estar longe do que o público cativo deste tipo produto almeja, procurando agradar talvez uma plateia mais seleta que geralmente não é atendida, mas que também deseja sentir um arrepio na espinha vez ou outra. E final feliz existe aqui? Bem, dependendo do ponto de vista sim. Ah, e para quem o filme não agradar uma boa notícia: não ficam farpas evidentes para justificar uma continuação.
Suspense - 104 min - 2005
Esse nunca assisti. Porém, sempre leio bons textos sobre o projeto.
ResponderExcluirQuem sabe nessas férias.
Essa atriz entrou num caminho correto ao longo da carreira. Pena que nos últimos anos não esteja no auge.
abs