NOTA 8,0 Através de uma biografia, longa faz uma homenagem ao cinema, mas esbarra na impopularidade do homenageado |
Existem alguns filmes que embora cercados de cuidados e
tratados como superproduções desde a concepção da ideia inicial parece que já nascem
com quase tudo contra o seu sucesso. O Aviador é um bom exemplo. Longo demais, uma
biografia a respeito de um homem que deixou sua marca na história americana,
mas estranho a boa parte da população mundial, jeito de dramalhão e Leonardo
DiCaprio como protagonista, na época ainda batalhando para se livrar do estigma
negativo que Titanic lhe deixou como herança para sua carreira. Por outro lado,
o elenco coadjuvante repleto de nomes famosos e talentosos, a reprodução
impecável da primeira metade do século 20 e a metalinguagem de homenagear o
cinema dentro de um filme são pontos que chamam a atenção e trabalham a favor
do longa. Somam-se a isso tudo a direção sempre competente de Martin Scorsese e
muitas indicações a prêmios. Com essa mistura heterogênea de ingredientes, a
biografia do excêntrico e milionário Howard Hughes ganhou notoriedade, levou
bastante gente aos cinemas e movimentou o mercado de locações quando lançado em
DVD, mas a aprovação não foi a esperada. Muita gente após o término (se é que
assistiram até a última cena) provavelmente jurou não recomendar este filme nem
para o seu pior inimigo. E isso não é exagero, é verídico, mas uma grande
injustiça feita com uma produção que consegue ser mais que um drama biográfico
sobre um homem que teve muita importância para a aviação, mas também um belo e
merecido registro de um período da História do cinema americano, uma época importantíssima
para consolidar esta arte como forma de entretenimento e geradora de renda e
trabalho. O filme é baseado em eventos reais da vida do megalomaníaco
Hughes (DiCaprio), um homem cuja trajetória se confunde com os avanços da
aviação e do cinema. Na década de 1920, depois de herdar uma verdadeira
fortuna, o jovem passa a investir na sétima arte e filma um épico de realismo
impressionante, porém, muito perfeccionista, ele decide regravar tudo quando surge
o cinema sonoro e jamais aceitava trabalhar quando um detalhe mínimo lhe
escapava, o que irritava muitos seus companheiros de trás das câmeras pelos
constantes atrasos e imprevistos nas filmagens. Além disso, graças aos filmes,
ele também entrou em contato com a área da aviação e assim também gastou boa parte
de seu dinheiro investindo no que havia de mais moderno para melhorar este
campo, algo que sem dúvida refletiu positivamente no futuro da área.
Rico, bonito e atraindo a atenção da imprensa por onde
passava, obviamente Hughes vivia cercado por belas mulheres, entre elas as
estrelas de cinema Katharine Hepburn (Cate Blanchett) e Ava Gardner (Kate
Beckinsale, um pouco insossa). Outros artistas foram selecionados para
participações especiais interpretando pessoas reais que fizeram parte da vida
do excêntrico milionário, como o ator Errol Flynn (Jude Law), o jornalista
Roland Sweet (Willem Dafoe), a atriz Jean Harlow (Gwen Stefani), seu contador
Noah Dietrich (John C. Reilly), e nem mesmo alguns de seus desafetos foram
esquecidos, como o empreendedor Juan Trippe (Alec Baldwin) e o senador Ralph
Owen Brewster (Alan Alda). Em meio a tantas estrelas, quem se destaca durante
todo o filme é DiCaprio apresentando uma interpretação madura e digna de
elogios. Apresentando até aquele momento a sua melhor atuação, sendo sua
terceira parceria com Scorsese, até a metade do longa, diga-se de passagem,
muito interessante, o ator encanta o público com uma interpretação vigorosa e
em certos momentos até engraçada devido ao jeito exagerado do personagem gastar
seu dinheiro. Para o milionário não havia limites, tudo tinha um preço e ele
estava disposto a pagar o quanto fosse preciso para realizar suas vontades. Seu
brilho só diminui um pouco quando uma das maiores atrizes do cinema, Katherine
Hepburn, entra na história. Sua intérprete, para variar, rouba a cena e encarna
a diva com perfeição, um desempenho merecidamente recompensado com o Oscar de
atriz coadjuvante. A segunda parte da narrativa é dedicada ao período de decadência
do milionário que acaba sofrendo para enfrentar situações corriqueiras e
simples como abrir uma porta, o popular transtorno obsessivo compulsivo, até
chegar a insanidade, o que não evitou que ele fosse levado aos tribunais para
prestar contas a respeito de seus gastos excessivos em seus áureos tempos .
Exigido praticamente da primeira até a última cena, Di Caprio realmente
consegue nos fazer esquecer sua imagem de modelo de comercial de pasta de dente
e as fofocas a respeito de sua vida pessoal publicadas em tablóides e enxergar
um grande ator em cena, ou melhor, não demora muito para acreditarmos estar
vendo em cena o autêntico Hughes. Tanto empenho ele próprio se cobra a cada
novo trabalho e aqui ainda precisava fazer o longa render elogios, afinal ele
mesmo correu atrás para realizar essa cinebiografia e fica com o papel
principal. O homenageado já teve os pormenores de sua vida pessoal e
profissional exibidos em uma ou outra produção antiga, mas nunca como neste
caso, um projeto que passou pelas mãos de vários diretores que por motivos
diversos declinaram o convite para dirigir esta superprodução. Sorte de
Scorsese que conseguiu mais um belo trabalho para seu currículo.
Mas se as atuações são dignas, a história é interessante, a
parte técnica impecável e a direção é de um homem que dificilmente decepciona,
por que este trabalho tem desafetos inflamados e outros defensores que tecem
elogios aos montes? A resposta pode estar no roteiro de John Logan. Os
problemas começam ao enfocar a vida de uma pessoa desconhecida por muitos. Pelo
menos no Brasil, só mesmo os aficionados por cinema, aviação ou por fatos
históricos e cultura americana já tinham ouvido falar em Hughes antes do lançamento
do filme. Condensar uma vida repleta de realizações em um longa-metragem também
não é uma tarefa das mais fáceis. Mesmo contando com praticamente três horas de
duração, parece que alguns fatos da vida do biografado são passados de forma
muito rasteira o que ocasiona uma ausência de clímax. No conjunto, é difícil se
lembrar de uma cena-chave para a obra, alguma sequência marcante. Seria alguma passagem
de sua juventude em meio a um mundo glamoroso? Seus passeios por hangares
sujos, provando que dentro da carapaça de um ricaço existia uma pessoa
simplória? Seu entusiasmo comandando alguma produção de cinema? O acidente em
que se envolveu? Seus ataques de loucura que o proíbem de tocar em uma maçaneta
da porta de um banheiro público ou que o obrigam a guardar a própria urina em
garrafas? Ou ainda os momentos finais em que é levado a julgamento acusado de
roubar milhões do governo para investir em seus sonhos? Talvez nenhum deles
sejam momentos memoráveis daqueles que entram para a História do cinema. De
qualquer forma, O Aviador é um belíssimo filme que entretém o espectador praticamente
do início ao fim, isso se não fosse o fato da conclusão realmente decepcionar e
não fazer jus ao restante da obra. Fora isso, o enredo realmente tem pontos muito
interessantes e curiosos, interpretações vigorosas e um visual arrebatador,
contando com uma bela reconstituição de época requintada pela fotografia e
iluminação perfeitas que retratam de forma ensolarada a primeira parte do
roteiro e abrem espaço para cores mais escuras para retratar o declínio do
sonhador Hughes, um homem que escreveu seu nome na História com suas invenções
em busca de seus objetivos e perfeições e que Scorsese e DiCaprio trataram de
apresentar ao mundo em grande estilo. O Oscar agraciou a obra com cinco
troféus, mas, estranhamente, não o de Melhor Filme, embora fosse apontado como
o favorito. É faz tempo que a Academia de Cinema de Hollywood privilegia o lado
comercial e não o artístico na hora de eleger os melhores do ano.
Vencedor dos Oscar de atriz coadjuvante (Cate Blanchett), edição, fotografia, direção de arte e figurinos
Vencedor dos Oscar de atriz coadjuvante (Cate Blanchett), edição, fotografia, direção de arte e figurinos
Drama - 168 min - 2004
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