NOTA 8,0 Longa aborda assuntos do mundo feminino através das histórias de um grupo de mulheres do Líbano |
Se o cinema europeu já não é muito bem aproveitado e
apreciado fora de sua região, o que dizer de uma produção árabe? Bem, os
brasileiros que gostam de filmes alternativos e ficam com os ânimos exaltados
nas temporadas de prêmios sérios ou nas de festivais e mostras podem se dar por
satisfeitos de felizmente algumas distribuidoras nacionais se preocuparem em
trazer obras de diversas nacionalidades para cá. Hoje é possível encontrar sem
muito esforço trabalhos de países famosos, como Espanha e França, e com um
pouco mais de boa vontade e espírito curioso descobrir verdadeiros tesouros
oriundos da Índia, Bósnia, Grécia, enfim, a produção cinematográfica dos quatro
cantos do mundo pode ser conhecida por todos, ainda que em pequenas e espaçadas
doses. O fato de vários países se unirem para realizar um mesmo trabalho também
ajuda a aumentar a distribuição dos títulos como é o caso de Caramelo, uma
co-produção da França com o Líbano. Este filme é uma agradável mistura de drama
com boas doses de humor que convida o espectador a conhecer o cotidiano e a
intimidade de um grupo de mulheres que trabalham ou frequentam um salão de
beleza cuja especialidade é a depilação feita com uma velha receita oriental
que leva água, açúcar e limão ao fogo até formar uma massa pegajosa, o que
explica o curioso título. Em um bairro simples de Beirute, no Líbano, o salão
de beleza Sibelle parece ser o local mais agitado do local. As funcionárias e
algumas frequentadoras estão passando por momentos conturbados de suas vidas e
precisam refletir para tomar as melhores decisões. Através de cinco mulheres,
temos um painel social que revela preconceitos, tradições e convenções que
regem suas vidas, mas no fundo todas elas desejam ser felizes. Layale (Nadine
Labaki) comanda o salão, mas sua grande preocupação no momento é com o
relacionamento que mantém com um homem casado que prometeu abandonar a esposa
para ficar com ela. Nisrine (Yasmine Elmasri) é muçulmana e está prestes a se
casar, mas não é mais virgem e está com medo da repulsa do noivo e sua família.
Rima (Joanna Moukarzel) sente atração por mulheres e gosta de usar roupas mais
masculinizadas, porém, reprime sua homossexualidade e só dá vazão aos seus
sentimentos quando lava os cabelos das clientes, podendo acariciá-las
superficialmente, mas o suficiente para se satisfazer. Uma das clientes mais
assíduas é Jamale (Gisèle Aouad), uma atriz madura que nunca atingiu o
estrelato e é obcecada pela ideia de se manter jovem.
Circundando o local existe Rose (Sihame Haddad), a vizinha
costureira que abdicou de sua própria vida para cuidar da irmã mais velha que
sofre de problemas mentais. Sua irmã Lili (Aziza Semaan), apesar de
coadjuvante, praticamente se torna peça fundamental de parte da trama, pois é
ela quem protagoniza as melhores cenas de humor. Sem papas na língua, ela fala
tudo o que quer sem se preocupar se está diante de um estranho ou se não está
dizendo coisa com coisa. Ela ainda tem o hábito de recolher papéis nas ruas
acreditando que são cartas de amor destinadas a ela de um namorado que há
tempos desapareceu, uma ótima saída para Layale se livrar dos inúmeros papéis
de multas de trânsito que recebe do guarda de trânsito Youssef (Adel Karam),
um homem que passa a ter importância na vida da moça ao começar a cortejá-la.
Com esse leque de personagens, Nadine Labaki, também diretora do longa,
construiu uma obra que coloca em discussão o papel da mulher em uma sociedade
apegada a tradições, que ainda não aceita totalmente certos costumes ocidentais
e que por mais religiosa que seja mede o valor de uma pessoa através da
aparência. O roteiro da própria cineasta em parceria com Jihad Hojelly e Rodney
Al Haddad apresenta conflitos típicos das jovens muçulmanas, como virgindade,
amar o impossível, homossexualismo, dividindo espaço com os dramas das senhoras,
como aceitar o envelhecimento, doenças da idade, a perda da própria vida para
ajudar a outra pessoa. Todos estes temas praticamente são desenvolvidos em um
ambiente o mais feminino impossível. Óbvio que tal ideia não é uma novidade no
cinema. A França tem em sua filmografia, por exemplo, Instituto de Beleza Vênus,
mais um trabalho a seguir a fórmula de analisar perfis femininos através do
movimento de um salão de cabeleireiros. É até previsível o destino das
personagens antes mesmo de chegarmos a meia hora de filme, mas nada que
estrague o prazer de ver um produto que preza pelo visual, emocional e sem
precisar recorrer a longas sequências de contemplação ou troca de olhares, uma
mania de cineastas estrangeiros que chega a afastar o público. De maneira muito
sútil Nadine capta com sua câmera emoções, alegrias, sonhos e anseios dessas
mulheres fazendo levemente críticas e ironias, mas sem ofender ninguém. O
bairro em que a ação se concentra até parece utópico, um lugar que não existe
mais onde as pessoas se conhecem, se respeitam e ajudam umas as outras, como
fica evidente quando Rose decide dar uma chance ao amor ou quando Jamale
precisa se produzir para mais um teste de atriz. Enfim, são várias as cenas que
exaltam o espírito solidário dessas mulheres.
O caramelo usado para as depilações no salão também faz uma
alusão a doçura das profissionais do local e as cenas em que ele é usado tem
toques irresistíveis de sensualidade. A forma com que ele é manuseado por
Layale evidencia o lado sensual da história que ganha ainda mais potência
quando as lentes capturam os movimentos lentos e instigantes das pálpebras da
moça. Nas mãos de um diretor insensível, este enredo poderia facilmente
enveredar para a linha pornô-soft já que o tema é convidativo, mas felizmente
somos contemplados com uma obra madura e que em nenhum momento se torna
constrangedora. É até difícil acreditar que esta é a estréia de Nadine nas
funções de diretora. Ela demonstra tanta desenvoltura e habilidade que parece
que já dirigiu diversos outros filmes. É interessante observar algumas opções
estéticas suas como a fotografia amarelada, resultado de uma boa iluminação e
cenários e figurinos em tons pastéis e ocres, e também merece elogios sua
escolha de canções para compor a trilha sonora, todas produzidas por
instrumentos típicos da região e com ritmo característico. Parecem detalhes
bobos, mas no conjunto eles fazem a diferença e só realçam a beleza e as boas
intenções de Caramelo, uma produção que merece ser vista não só pelas mulheres,
mas também pelos homens. Ah isso é coisa de mulherzinha? Bem, no longa tem uma
jovem que lava sempre seus cabelos com a cabeleireira lésbica e é aconselhada
por ela a fazer um corte curto. No início ela reluta, mas quando toma a decisão
de acatar o conselho e se livrar das longas madeixas, ela exibe um largo e
espontâneo sorriso por onde passa. Ela se libertou das amarras preconceituosas
e regras familiares que a obrigavam a cultivar uma longa cabeleira e também lhe
proibiam de conviver com uma pessoa que leva uma vida fora dos padrões. Tome
isso como exemplo, livre-se dos preconceitos e se dê o direito de se
deliciar com este filme que não é nenhuma obra-prima, tampouco inovador, mas
que de alguma forma é irresistível.
Drama - 95 min - 2007
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